domingo, maio 06, 2007

A propósito de "jornalismo de sarjeta"

A propósito da referência que eu fiz num comentário anterior, à expressão "jornalismo de sarjeta", recebi por correio electrónico um texto juntando o comentário do ministro Artur Santos Silva - autor da expressão numa declaração ao blogue "Blogouve-se (postais sobre jornalismo)" - enviado a um jornalista daquele blogue, texto exsse que naturalmente publico na íntegra:
Depoimento feito a pedido do blogue “blogouve-se”
Caro Jornalista João Paulo Meneses:
1. Não inventei a expressão “jornalismo de sarjeta”. Ela é usada internacionalmente, e para designar esse subproduto que não hesita na violação dos mais elementares direitos de personalidade (como os direitos à intimidade da vida privada, ao bom-nome ou à imagem). Em Portugal, já vi a expressão ser usada, com toda a propriedade, por vários jornalistas reputados, entre os quais um antigo presidente do Conselho Deontológico e uma antiga presidente do Sindicato.
2. Tomando por referência quadros normativos e deontológicos nacionais, é fácil identificar com clareza e precisão aquilo a que se pode chamar o jornalismo de sarjeta: a) É o que viola grosseira e deliberadamente o disposto nos artigos 25º e 26 da Constituição, dos quais me permito transcrever: “Artigo 25º Direito à integridade pessoal 1.A integridade moral e física das pessoas é inviolável (…); Artigo 26º Outros direitos pessoais 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom-nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias (…)”,
b) E é o que viola grosseira e deliberadamente os preceitos 2, 4, 7, 8 e 9 do Código Deontológico, que também transcrevo: “2- O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais. 4- O jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja. A identificação como jornalista é a regra e outros processos só podem justificar-se por razões de incontestável interesse público. 7- O jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinquentes menores de idade, assim como deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor. 8- O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo. 9- O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende. O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas. ”
3. Falo de violação grosseira e deliberada. É que, por um lado, é muitas vezes difícil aquilatar quando acaba o direito-dever de informar sobre factos relevantes de interesse público e começa, por exemplo, o direito à privacidade; importa, pois, falar de violação grosseira, sem margem para dúvidas razoáveis. E, por outro lado, todos nós nos enganamos, só não comete erros ou mesmo ofensas ocasionais e involuntárias quem nada faz; retenha-se portanto, apenas, a violação deliberada. Mas, para dar um exemplo real e recente: quando alguns jornais e jornalistas persistiram na identificação de uma criança vítima de abusos horríveis, apesar de repetidamente avisados da ilegitimidade de um tal comportamento, podemos ou não usar, para exprimir a nossa indignação, a expressão “jornalismo de sarjeta”? Eu acho que podemos e devemos, talvez com uma modificação: passar a falar em lumpen-jornalismo de sarjeta, primeiro para negar a essa conduta o nobre nome de jornalismo e, segundo, para evidenciar as más condições de trabalho profissional que tantas vezes explicam (embora não justifiquem) tal deriva.
4. Aproveito a oportunidade para três precisões:
Dizer que há (também em Portugal) jornalismo de sarjeta não quer dizer que o jornalismo (também o português) seja de sarjeta. Da mesma forma que haver políticos corruptos não torna os políticos corruptos e, inversamente, não se poder dizer que os políticos sejam corruptos não significa que não haja políticos corruptos. Quem disse ou insinuou, por estes dias, que eu tinha qualificado o jornalismo ou os jornalistas portugueses como jornalismo de sarjeta mentiu descarada e intencionalmente;
Insinuou-se ainda que eu haveria designado por jornalismo de sarjeta o jornalismo de investigação. Outra falsidade. O jornalismo de investigação está nos antípodas do tabloidismo e do sensacionalismo. Mesmo quando tem de descer à “sarjeta” para verificar alguns indícios de factualidades, sabe fazê-lo “olhando para as estrelas” – e estou a usar os termos da expressão de Óscar Wilde, que, aliás, julgo estar ligada à cunhagem da designação que agora nos ocupa. Importa é, isso sim, distinguir com clareza o jornalismo de investigação e aquilo a que vários jornalistas chamam, e bem, jornalismo de suspeição (e/ou jornalismo panfletário);
O combate ao jornalismo de sarjeta é um direito-dever de cada uma das suas vítimas e do conjunto dos cidadãos. Para isso existem a Constituição e as Leis, e, para aplicá-las, consoante a natureza do ilícito, entidades administrativas e tribunais. Eu limito-me a acrescentar que esse combate é também um direito-dever da profissão, em sistema de auto-regulação. O novo Estatuto do Jornalista, ao instituir um regime que permitirá sancionar infracções aos deveres profissionais típicas do jornalismo de sarjeta (entre outra infracções que o não são, como por exemplo a confusão dos papeis de jornalista e de entertainer), apenas se limitará a dotar a profissão, através da necessária delegação expressa de poderes pelo Parlamento, do instrumento disciplinar. Que só poderá ser aplicado, como é bom que seja, por jornalistas, em estrita auto-regulação profissional. Se a profissão o usará bem, para se regular a si própria, é uma pergunta a que só a profissão pode responder.
Lisboa, 23 de Abril de 2007
Augusto Santos Silva"

Queria contudou lembrar ao "Blogouve-se (postais sobre jornalismo" que a expressão "jornalismo de sargeta" foi utilizada pela primeira vez pelo ministro Artur Silva numa entrevista ao Correio da Manhã, um mês antes das declarações ao blogue.

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