quarta-feira, setembro 26, 2007

Monteiro Dinis e a Autonomia (*) (I)

"A Assembleia Constituinte sufragada após o 25 de Abril, proclamou, solenemente, a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia e de assegurar o primado do Estado de direito democrático. E, na decorrência desta lapidar enunciação doutrinal, a Constituição então aprovada, reconhecendo as características geográficas, económicas, sociais e culturais bem como as históricas aspirações autonomistas das populações insulares, instituiu as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, às quais outorgou um regime político-administrativo próprio.
A criação do sistema autonómico regional, por muitos considerada como uma das mais profundas inovações constitucionais no domínio da estrutura do Estado, constituiu paradigma e exemplo da democracia plena adoptada pelos deputados constituintes, pois que semelhante regime nunca poderia ser consagrado em sistemas políticos autoritários, de forte pendor centralizante, com largos condicionamentos dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e das entidades territoriais com especificidades próprias, razão pela qual todas as tentativas que, com maior ou menor empenho, suporte e determinação, haviam sido em tal sentido ensaiadas ao longo dos tempos, se saldaram sempre em inevitável insucesso.
Da transposição dos princípios organizatórios do Estado para o plano das realidades materiais, com a implantação do sistema autonómico e após o início da sua vigência até à actualidade, resultou, como é imperativo reconhecer-se, um assinalado desenvolvimento civilizacional do arquipélago, tanto na dimensão económica como cultural e social.
E, por outro lado, ainda como emanação e consequência da instituição da autonomia, a população madeirense passou a dispor de um privilegiado estatuto de cidadania, na medida em que lhe foi conferido um decisivo e fulcral poder na determinação, constituição e funcionamento dos seus órgãos de governo próprio, para além de ainda ser chamada a participar na eleição dos órgãos de soberania do Estado.
Mas, deste privilegiado enquadramento constitucional passou a decorrer para os cidadãos insulares uma acrescida responsabilidade cívica e política porquanto, em bom rigor, as amplas competências políticas, legislativas, administrativas e económico-financeiras cometidas aos titulares do poder politico regional, ficaram a depender, a partir de então, ao seu exclusivo juízo avaliativo e ao critério da sua escolha e eleição.
E esta realidade estrutural do sistema faz acrescer, porventura, a importância dos partidos políticos enquanto entidades que concorrem para a organização e expressão da vontade popular, e também das comunidades cívicas da sociedade civil, aos quais compete informar e esclarecer os cidadãos na determinação das suas opções politicas e na dinamização da própria vivência social e cultural da colectividade .
É que, numa região com escassa dimensão territorial e diminuta população, muito marcada por um certo atavismo histórico-cultural, centrado em especial nas questões e condicionamentos da insularidade, assumem especial importância as mensagens transmitidas pelos partidos políticos e por aquelas entidades, em ordem ao esclarecimento e compreensão das regras de funcionamento do complexo sistema autonómico e das questões derivadas da intercomunicabilidade existente entre a República e a Região, assim como a delimitação rigorosa do que pertence à responsabilidade decisória de uma e de outra.
Sem embargo de a Constituição, ainda hoje, porventura já sem cabal justificação, proibir a constituição de partidos que, pela sua designação ou pelos seus objectivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional, e independentemente do princípio da unidade do Estado cujo acatamento sempre lhes seria devido, há-de reconhecer-se que as forças politicas regionalmente radicadas, pela própria natureza das coisas, privilegiam na sua acção o esclarecimento das matérias e questões que directamente respeitam às populações insulares, e só mediatamente às matérias de índole nacional, em especial quando estas se projectam sobre o ordenamento regional e se repercutem sobre a vida daquelas populações.
Ora, é sabido que os sistemas democráticos convivem com uma permanente tensão dialéctica, em termos de o poder politico dever estar sujeito a um continuado escrutínio contraditório, por forma a que as decisões dos órgãos de poder, para além de se suportarem na regra da maioria, possam, permanentemente, ser objecto de juízos de avaliação critica das oposições e da sociedade em geral.
E porque sem a prévia consagração de um sistema democrático nunca a autonomia regional poderia ter sido instaurada, necessariamente que esta, inserida que está no quadro de um Estado de direito democrático, há-de ater-se aos princípios rectores que o fundamentam e dele são apanágio.
Todavia, a existência ao lado dos órgãos de soberania e do poder político do Estado, de um poder politico regional, dispondo este, em largos domínios de uma vasta competência de auto-regulação, sempre tem gerado em Estados total ou parcialmente regionalizados como bem decorre da lição do direito comparado, para além de uma potencial conflitualidade entre os Entes territoriais menores e o Estado central, querelas e afrontamentos entre forças políticas regionais que, em determinadas situações, reclamam a intervenção do poder central contra os próprios órgãos do poder regional, mesmo quando aquele não dispõe de competência política e legal para em tais matérias intervir como entidade decisória.
E por vezes, como tem acontecido em algumas Comunidades Autónomas de Espanha, a conflitualidade entre os princípios da autonomia politica e da soberania e unidade nacional, atingem dimensões de grande tensão e melindre institucional que felizmente, nunca se colocaram nem colocam no sistema constitucional português.
Na situação concreta da Região Autónoma da Madeira, independentemente de algumas dissonâncias por vezes verificadas, nomeadamente na exacta delimitação das competências legislativas entre o Parlamento Nacional e o Parlamento Regional, encerrado que está o processo eleitoral ocorrido no mês de Maio findo, importará agora no quadro dos princípios democráticos e na vivência de um respeito institucional recíproco entre a República e a Região e entre a maioria e as minorias resultantes daquela eleição, incentivar um clima de conciliação institucional, reconhecendo-se a legitimidade democrática da maioria parlamentar e do poder governativo dela dimanado, e do mesmo modo, assegurando-se às minorias, também democraticamente legitimadas, a prática plena das competências que a lei lhes confere em ordem à fiscalização e controlo da actividade de quem exerce o poder politico. São estes os votos que formulo, manifestando agora e permanentemente a minha disponibilidade para cooperar com todas as forças políticas, do poder ou da oposição, no sentido da concretização destes princípios fundamentais
".
(*) Passagem do discurso de Monteiro Dinis na cerimónia de entrega das condecorações do 10 de Junho de 2007

Sem comentários: