quinta-feira, julho 02, 2009

Autonomia: frases & ideias que ficam (II)

"· Autonomia política constitucional das nossas Regiões; uma solução portuguesa inspirada e construída por um longo processo de mais de um século, com avanços e recuos, com dedicações heróicas, com algumas traições também, mas com o claro objectivo de levar ao governo das ilhas pelos insulanos. Queremos nós, açorianos e madeirenses, sem abandonar a Pátria Portuguesa autogovernarmo-nos. É um desígnio que só nos honra e devia ser motivo de orgulho para os portugueses;
· As sábias palavras da nossa constituição, ao proclamar as autonomias insulares como forma de reforçar a unidade nacional e os laços da solidariedade entre todos os portugueses, sempre me motivaram e serão o fio condutor do meu pensamento também aqui;
· A época de pragmatismos que vivemos, alheia a idealismos abstractos aconselha-me a acrescentar que para além de tudo mais existem interesses comuns que beneficiam amplamente a união entre a República Portuguesa e as Regiões Autónomas. Sem as ilhas atlânticas Portugal seria hoje ainda mais periférico e mais insignificante no conceito das nações, na União Europeia e no relacionamento bilateral com as potências deste mundo;
· Nós ilhéus, por nossa parte, encontramos na República o suporte e o amparo que a nossa condição arquipelágica e a nossa pequenez nos impõe;
· Estão assim criados os condicionalismos para um frutuoso entendimento entre as partes e para o reforço da unidade da Pátria comum, porque nem uns se sentem a mais, nem os outros podem em consciência olhar-nos como pesos mortos. Só o centralismo vesgo, a pouca inteligência, a mesquinhez e, sabe-se lá, a inveja com que alguns nos acusam de traidores e nos olham como incómodos apêndices que prejudicam o todo e lá no íntimo alimentam a esperança de se separarem de nós;
· O decantado separatismo (tigre de papel que já não amedronta) tem sido sobretudo e sempre de lá para cá e mais raramente de cá para lá;
· Federalismo, um ideal dos mais nobres da liberdade dos povos escolherem o caminho que lhes convém para a sua própria felicidade, fim último das aspirações humanas e da política. Solução progressista, pacifista e democrática, com provas dadas um pouco por toda a parte onde triunfou e preservou a unidade de populações com interesses comuns, engrandeceu as pátrias e assegurou as liberdades;
· (como açoriano) ponho a tónica do meu entusiasmo pelo federalismo; assim o entendesse a União Europeia, perdida que anda em tratados de duvidosa democraticidade e enamorada por centralismos burocráticos;
· Vivemos dias de apreensão, de “apagada e vil tristeza”, nos quais assistimos ao quebrar dos consensos acerca da autonomia constitucional, ao cercear das nossas liberdades e ao quebrar dos acordos existentes. Os nossos inimigos, porque sempre os tivemos, redobram os ataques e parecem inspirar as atitudes das mais altas magistraturas do Estado;
· Dias negros estes, que não asseguram tranquilidade, mas obrigam a uma reflexão serena. Se o exercício do quotidiano autonómico, ao longo destes trinta anos de constituição, se pode considerar um êxito, que arrancou as nossas ilhas do secular atraso, o mesmo não se pode afirmar quanto à evolução constitucional. Os bloqueios da Autonomia agravaram-se e as sucessivas revisões constitucionais nesse campo tiveram o condão de dificultarem, emaranharem e obscurecerem aquilo que pretendiam clarificar;
·Tudo nasceu de termos, principalmente em 2004, ouvido o canto de sereia que nos aliciou para mais uma vez se aperfeiçoar e aprofundar um texto constitucional que necessitava já então de outro tratamento. Aceitamos remendar um texto que em boa verdade pedia antes uma ruptura com alguns dos seus conceitos;
· A raiz da maioria dos nossos males e dos nossos desencantos radica na perniciosa definição de Estado unitário, na constituição de 1976, apesar da alteração introduzida em 1997 que pretendeu moderar a força desse conceito através da obrigação de respeito na sua organização e funcionamento pelo regime autonómico insular. Em boa verdade, a existência de autonomias políticas num Estado unitário é um contra-senso e só preconceitos centralistas podem justificar que semelhante absurdo venha sobrevivendo durante 30 anos, mesmo quando os programas políticos para as autonomias continuamente fazem sobressair a incongruência;
· Os poderes legislativos regionais, que pretendem ser a concretização do direito que nos assiste de termos leis diferentes para nos regermos em tudo aquilo que não seja reserva de competência exclusiva da Assembleia da República, norma bastas vezes afirmada no discurso político autonómico, não poder sobreviver no Estado unitário;
· Para que as leis regionais se sobreponham nas Regiões Autónomas às leis da República é necessário aceitar-se a existência de três ordens jurídicas territoriais entre nós portugueses e isso é incompatível com o Estado unitário, por mais estatutos político-administrativos que se aprovem;
· Aqui radica outra das dificuldades das autonomias políticas: os Estatutos Político-Administrativos, através dos quais se pretendeu, sempre sem êxito, aprofundar a autonomia política constitucional e até influenciar a constituição. A história dos estatutos é a prova irrefutável disso, porque ou eles se transformam numa cópia da constituição e são supérfluos, ou rapidamente se transformam em pomo de discórdia e acabam os seus dias retalhados pelas já famosas interpretações restritivas do Tribunal Constitucional;
· Não vale a pena fugir ao concreto. A polémica política acerca do último estatuto açoriano, entre o Presidente da República e a maioria parlamentar é um mar de provas daquilo que digo. Aliás, desde cedo se percebeu que os estatutos seriam a nossa cruz e foi por isso que ainda na constituinte se pretendeu, pela parte dos autonomistas açorianos, pelo menos, que a constituição aceitasse a ideia que por essa via era possível atribuir poderes às Regiões Autónomas, o que foi liminarmente rejeitado;
· Os estatutos político-administrativos foram sucessivamente desvalorizados acabando transformados em lei ordinária da República e consequentemente dependentes de uma qualquer maioria parlamentar. Nem a norma consuetudinária que só por proposta das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas a Assembleia da Republica os pode alterar é suficiente para nos tranquilizar. Quando se pretendeu que ficasse claro no texto estatutário esse princípio, levantou o Presidente da República as objecções que se conhecem, por ser uma auto mutilação do próprio órgão de soberania, a Assembleia da República;
· Isto é, a ideia de uma partilha da soberania entre a Assembleia da Republica e as Assembleias Legislativas repugna a muitos e de certo àqueles que se revêem no Estado unitário, apesar da partilha de soberania com a União Europeia. Se a nós autonomistas nos negam os direitos de participação através das Assembleias Legislativas na revisão constitucional, pela audição formal dos nossos parlamentos e nos negam ainda direito de serem as nossas assembleias a iniciarem o processo de alteração estatutária, não podem esperar que fiquemos indiferentes e de mãos atadas;
· A origem do poder político autonómico foi sempre desde o início do processo uma zona de sombras e de diferendos. Conquista dos povos insulares ou outorga da soberania nacional, foram as duas fontes que inspiram o discurso e consciente ou inconscientemente moldam os conceitos, as leis e a própria constituição;
· É este um dos casos em que a solução federal viria clarificar, acalmar e decidir com equidade. As Regiões Autónomas aspiram a serem estados, estados regionais, a terem uma constituição e a livremente se integrarem no Estado português que por sua vez terá que decidir se nos aceita com esses direitos e velhas aspirações. È tão simples como isso, mas para tanto é necessário que as nossas Assembleias Legislativas falem claro, abandonem as meias palavras, as sombras os fingimentos e a Assembleia da República, por sua vez, faça o mesmo;
· O princípio definido do federalismo, que assenta na pluralidade de ordenamentos constitucionais, traduzida na pluralidade de centros do poder político, surge-me como a resposta às nossas aspirações e uma solução para os problemas enunciados;
· O federalismo é na prática uma estrutura de participação, em que o poder político central é concebido como resultante da agregação de poderes políticos menores. Não é isso afinal aquilo que há 30 anos andamos em busca na nossa história constitucional?
· É evidente que a constituição federal condiciona a validade das constituições estaduais, mas isso no fundo e também é aquilo que o pacto autonómico pretende quando declara aceitar a soberania da República, só que naquilo que é a espinha dorsal da Nação, da Pátria comum, e não uma subordinação a governos centralizadores, autoritários e sempre disponíveis para imporem soluções unilaterais. A forma como o preceito constitucional da audição prévia dos órgãos de governo próprio das Regiões em matéria do seu interesse e tem sido usado um eloquente libelo de acusação do nefasto centralismo dos órgãos de soberania;
· O federalismo, por outro lado, não teme a existência de identidades diferentes mas complementares entre as populações da federação, encarando-as antes como enriquecedoras do todo;
· “O regime político-administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta-se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares”, reza a constituição. Bonita, equilibrada e feliz formulação esta. Só que tem sido impossível dar-lhe conteúdo quando se pretende atribuir direitos políticos a essas mesmas populações. Desde logo na lei eleitoral, que sempre negou aos açorianos e aos madeirenses como tal direito de voto. Votam para as Assembleias Legislativas os portugueses residentes nas Regiões Autónomas e os nossos parlamentares representam evidentemente esse universo e não, como gostam de proclamar os nossos deputados, o povo açoriano ou o povo madeirense. Para que haja lógica e harmonia a lei eleitoral, sem negar evidentemente o voto aos portugueses residentes nas Regiões Autónomas, devia atribui-lo especificamente aos sujeitos que são a ração de ser do regime político-administrativo próprio dos arquipélagos;
· Mas as Assembleias Legislativas para que sejam, como é desejo expresso dos seus membros, a representação desses povos deviam ter nos seu seio representantes daqueles que sendo açorianos e madeirenses optaram ou foram obrigados a abandonar as ilhas. Açorianos e madeirenses não residentes não deixam de o serem e não devem perder o seu direito de participação democrática que a constituição pretende incentivar. Desde há 30 anos que este desiderato anda nos sucessivos estatutos político-administrativos, nas leis eleitorais e na própria constituição sem que para ele se encontre solução, não deixando o Tribunal constitucional de também aqui exercer o seu costumado voto contra;
· Voltou à ribalta com o polémico estatuto dos Açores, mascarado em meias tintas na redacção, ao atribuir-se o direito de voto a portugueses com dupla residência, na região e fora dela. Um campeão do centralismo, sempre vigilante, não perdeu a ocasião de rasgar as vetes da indignação contra o princípio da existência de um círculo eleitoral exterior ao território regional, anotando que este artifício de um fictício círculo de residência exterior não passava de “uma descarada tentativa de criação de um conceito de açorianidade política extraterritorial!”;
· Efectivamente o que deve fazer parte dos programas de clarificação dos princípios autonómicos para a concretização da representação política nas suas Assembleias Legislativas dos açorianos e dos madeirenses é falar claro e só depois encontrar a maneira de fixar na lei os objectivos a atingir;
· O federalismo é a solução para os nossos desencantos e desencontros". (fonte: José Reis Leite, ex-Presidente da Assembleia Legislativa dos Açores, na conferência “Autonomia e Federalismo”, Funchal, Julho de 2009)

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