domingo, julho 15, 2012

Em 1983, Mário Soares cortou o subsídio de Natal e trocou-o por dívida. Pode Passos fazer o mesmo?

"Depois do Tribunal Constitucional ter declarado inconstitucional o corte de subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e reformados, o Governo precisa de repor este valor em 2013, cerca de 2 mil milhões de euros, visto que o acórdão não abrange 2012. Uma das possíveis alternativas é o Executivo de Pedro Passos Coelho decidir pagar os subsídios de férias e de Natal em títulos de dívida. Esta possibilidade chegou a ser avançada o ano passado, tendo então o gabinete do primeiro-ministro José Sócrates ter desmentido que a troika tinha feito essa proposta. O certo é que na anterior intervenção do Fundo Monetário Internacional em Portugal, em 1983, o subsídio de Natal dos funcionários públicos foi pago em títulos do Tesouro, certificados de aforro, tendo o subsídio de férias permanecido intacto.
Pode o Estado trocar o corte dos subsídios por títulos da dívida?
Para os economistas João César das Neves e João Loureiro, esta alternativa não vai ajudar a resolver a crise em Portugal e consideram que a solução não passa por mais receita mas por mais cortes na despesa. João César das Neves considera que o pagamento em dívida do Estado é uma possibilidade, mas relembra que o acórdão do Tribunal Constitucional impediria o pagamento desta forma, porque voltava a abranger somente os trabalhadores do sector público. O professor da Universidade Católica recorda que esta alternativa "tem um impacto no défice", o que a torna inviável. "Com esta alternativa, o Estado gasta o dinheiro só que fica a dever, vai direito para a dívida pública mas o défice tem que lá estar", explica. O economista afirma que a "contabilidade pública é uma ciência oculta" e que "podia-se fazer um truque contabilístico e fingir que não estava lá nada mas de facto o Estado continua a pagar". "Se calhar era possível fazer uma aldrabice qualquer, com os juros dos certificados de aforro a não entrarem no défice porque vão directos para a dívida. Mas formalmente é défice, por isso é que aumenta a dívida", sublinhou. Esta opinião é partilhada pelo economista João Loureiro. A alternativa dos títulos de dívida "não adianta nada", explica, "por uma razão muito simples: Para todos os efeitos em termos contabilísticos uma solução dessas é sempre contabilizada como despesa, portanto conta para o défice. A própria emissão de títulos é considerada emissão de dívida e conta para a dívida".
"Ou seja, a único aspecto positivo desta solução é ser uma poupança forçada na perspectiva de funcionários públicos, ou seja, são obrigados a poupar sob a forma de certificados de aforro não podem realizar despesa", afirma. "Na perspectiva do Governo, há uma necessidade de liquidez que o Governo não tem de imediato. Estas são as vantagens, poupança reforçada e o Governo não tem necessidades de liquidez de imediato", explica o professor da Faculdade de Economia do Porto. Alargamento do pagamento dos subsídios em dívida ao sector privado João César das Neves explica também que o alargamento desta alternativa ao sector privado "não tem lógica" porque "quem paga os salários do sector privado não é o Estado são as empresas".
"A única maneira do Estado mexer no subsídio de férias e de Natal do privado é através de imposto, aumentar o imposto. É completamente diferente um salário pago pelo Estado ao seus funcionários e um pago pelas empresas que pagam impostos ao Estado e ainda pagam os salários" sublinha o professor da Católica. Por seu turno, João Loureiro explica como é que se poderia processar o pagamento dos subsídios através da dívida pública: "Esta é uma experiência que já aconteceu noutros países, isto é, o Governo forçar poupança, obrigar os privados, nomeadamente as famílias, receberem em títulos de dívida pública”. "Nesse caso, mesmo ao nível do sector privado, as empresas seriam obrigadas a comprar títulos de dívida pública para entregarem aos funcionários e, em contrapartida, entregavam a liquidez ao Estado", afirma o professor do Porto, que sublinha: " Isso não resolve o problema do défice, e tem apenas uma vantagem: O Estado não necessita de tanta liquidez, o tipo de problema que podia resolver não é um problema de verdade." A medida anterior era uma melhor alternativa, defende o economista da Católica porque reduzia a despesa: "O Estado deixou de pagar dinheiro, as pessoas não o receberam, portanto houve uma despesa que desceu".
Corte na despesa do Estado
Sobre as alternativas que o Governo tem em cima da mesa, ambos os economistas são peremptórios: É preciso cortar na despesa. "Era bom que o Estado começasse finalmente a resolver os seus problemas, porque tirar os salários aos funcionários públicos não resolve problema de espécie nenhuma. Era simplesmente uma medida temporária para o Estado começar finalmente a fazer uma reforma das suas despesas: mudar as regras, mudar os gastos, eliminar instituições, cortar serviços. É isto que devia fazer. Cortar os subsídios não resolve o problema estrutural", sentencia César das Neves. "Para mim é inevitável que a solução passa obrigatoriamente pela despesa. Aquilo que foi dito então pelos partidos que agora compõem o Governo é que a solução passava pelo corte de despesa e é isso que está consagrado no acordo celebrado pelo Estado português e pela troika, que é dois terços do ajustamento tem de ser pela via da despesa. Não vale a pena fugir a isto", afirma João Loureiro
(texto publicado no Dinheiro Vivo, com a devida vénia)

Sem comentários: