segunda-feira, setembro 24, 2012

Cristiano Ronaldo: "Não lhe basta ser "rico, giro e um grande jogador"

"Um jovem que alcança o estrelato subitamente aos 20 anos arrisca-se a ficar alheado da realidade. Precisa de alguém que iniba a egolatria. Ronaldo só tem quem lhe diga: "Lembra-te que és deus!" Joga futebol como se fosse tenista. O surpreendente - o realmente espantoso - é que não haja mais desportistas de elite que se comportem como umas crianças malcriadas. Pergunte-se, estimado leitor, como seria se aos 20 anos, quase da noite para o dia, você deixasse de ser um rapaz anónimo para se tornar num multimilionário famoso perseguido por fãs, media e mulheres. O normal - e este que aqui escreve não se exclui dessa hipótese - seria que isso lhe subisse à cabeça, que se tornasse egocêntrico, convencido, indiferente aos outros e, para a maioria das pessoas, mais ridículo que admirável. A não ser que o jovem tenha a sorte de contar com gente à sua volta capaz de antever o perigo que corre e entender que, pelo menos durante um tempo, é imprescindível submeter-se a uma dieta rigorosa de humildade e fazer todo o possível - sem eliminar necessariamente a opção extrema de recorrer a uma bofetada - para que mantenha os pés na terra. O espantoso, repetimos, é que a maioria destes fenómenos do desporto mundial pareçam encarar a celebridade e o dinheiro com bastante integridade. Especialmente em Espanha. Seria mais difícil escrever estas palavras num jornal de Inglaterra, por exemplo, uma vez que ali os futebolistas nacionais mais conhecidos não gozam de boa fama. Dizer que Wayne Rooney, John Terry, Ashley Cole ou Rio Ferdinand são malcriados é uma questão cuja veracidade ninguém duvida. Em contrapartida, quando olhamos para a selecção espanhola campeã do mundo, todos dão a impressão - salvo para aqueles que fazem os seus juízos morais em função dos clubes que seguem - de ser boas pessoas, a começar pelos dois vencedores do prémio Príncipe das Astúrias, Iker Casillas e Xavi Hernández. O que nos serve para demonstrar uma vez mais que a solidariedade familiar é um dos campos da vida, juntamente com o futebol e o turismo, nos quais Espanha pode competir com qualquer um.
O triste, para usar o adjectivo da moda nos últimos tempos, é quando quem está à volta do desportista não inibe a egolatria, pelo contrário, alimenta-a. E, como consequência, o personagem conhece-se pouco a si próprio, não é capaz de entender o mundo que o rodeia, nem de interpretar as reacções que provoca nas pessoas. Olhar para Cristiano Ronaldo agora, e ver a confusão em que se meteu, faz-me pensar numa conversa que tive num bar de Buenos Aires há alguns anos com Roberto Perfumo, ex-capitão da selecção argentina de futebol, sobre Diego Maradona. Maradona estava péssimo naquela altura. Obeso, à beira da morte, preso às suas dependências. Júlio César tinha um escravo sempre à mão, contou-me Perfumo, que lhe dizia: "Lembra-te que não és deus! Lembra-te que não és deus." O problema de Maradona, explicou Perfumo, foi que, desde uma tenra idade e até ao resto da sua vida, esteve rodeado de pessoas que lhe diziam o contrário: "Lembra-te que és deus! Lembra-te que és deus!"
Maradona sofreu a agravante de boa parte da população argentina se juntar ao coro celestial. Esse destino, ao menos, não calhou a Cristiano Ronaldo. O grave é que o endeusamento incondicional de Maradona parece ser precisamente o que falta ao jogador português. Segundo o que os media publicaram recentemente, depois de se ter recusado a celebrar os dois golos que marcou contra o Granada - explicou a seguir que não o fez porque estava "triste" -, Ronaldo não se sente suficientemente querido pelo seu clube, o Real Madrid. Precisa que o adorem mais. Precisa que o adorem como adoram aqueles que o rodeiam. E aquilo que se passou, claro, é que hoje é menos adorado que nunca.
Foi mal assessorado
Aqueles que o deveriam ter aconselhado não o fizeram. Primeiro, ninguém vai falar com Florentino Pérez [presidente do Real Madrid], como ele fez na véspera do jogo contra o Granada, a queixar-se da tristeza que sente quando Pérez acaba de perder a mulher. Segundo, não se anuncia ao mundo como estamos insatisfeitos com a vida quando ganhamos um salário de dez milhões de euros líquidos por ano e a maioria dos adeptos, e não adeptos, ou vivem as duras consequências ou sofrem da incerteza de uma dura crise económica. Ronaldo tentou corrigir-se, declarando dois dias depois do seu desabafo que o dinheiro não é tudo. Mas os danos estavam feitos. Como se mostrou de forma clara através de uma sondagem do diário As, os fãs do Real Madrid não vêem com bons olhos as queixas do seu melhor jogador. Custa a acreditar que o impacto seja muito positivo na já complicada relação de Ronaldo com alguns dos seus companheiros de balneário. É instrutivo fazer uma comparação com Rafael Nadal que - como adepto do Real Madrid - admira a qualidade futebolística de Cristiano Ronaldo. Nadal é o exemplo por excelência do desportista de elite cuja personalidade não foi contaminada pelo êxito. Sabe distinguir entre "Rafa", o mundialmente famoso gladiador das pistas de ténis, e "Rafael" (como lhe chamam aqueles que toda a vida o conheceram), a pessoa que continuaria a mesma, com as suas debilidades e as suas virtudes, caso tivesse ficado na sua terra natal, Manacor, a gerir o negócio de móveis da família. Como ele mesmo explicou, tem uma noção muita clara da distinção entre aquilo que fez e aquilo que é. Ronaldo declarou no ano passado, sem ponta de ironia, que as pessoas invejavam-no por ser "rico, giro e um grande jogador". No dia em que Nadal dissesse uma coisa dessas - que não diria nunca - punham-no fora de casa.
A sensatez de Nadal parte das pessoas que o rodeiam. Quando ganhava campeonatos na infância, a família recordava-lhe que a maioria dos rapazes que tinham conquistado aqueles mesmos troféus anteriormente passaram para o anonimato quando chegaram a adultos. Quando, com 14 anos, raparigas da sua idade faziam fila para lhe pedir autógrafos, os pais e a irmã faziam troça dele. Quando venceu o torneio de Roland Garros e disse ao pai que lhe apetecia comprar um carro desportivo de luxo, o pai respondeu-lhe: "Não te passes." Com a sua equipa profissional - o seu agente, chefe de imprensa, preparador físico, fisioterapeuta -, a relação é a mesma. São amigos que lhe dizem tudo, que se riem uns dos outros.
Elogios, só os mínimos
Quanto ao grande rival de Nadal, Roger Federer, quer o próprio Rafa como o seu tio Toni, seu treinador, têm muito claro e não têm problemas em confessá-lo: Federer possui um talento natural sem paralelo. O suíço é o melhor de todos os tempos, e ponto final. Tanto o treinador como o agente de Ronaldo, pelo contrário, não perdem uma oportunidade de lhe dizer o que ele quer ouvir: que ele é o maior, que é o melhor. E, concretamente, que é melhor que a sua Némesis (Némessi?), Lionel Messi. É difícil evitar a conclusão de que o actual imbróglio em que Ronaldo se meteu levou anos a encubar e que partiu da raiva e da dor que lhe causou ver o argentino levar as três últimas bolas de ouro, o maior prémio individual do futebol. Ronaldo joga futebol como se fosse tenista; como se competisse num desporto individual. É, como Nadal, uma força da natureza. Com excepção de Messi, não há ninguém que marque tantos golos. Mas, ao contrário de Messi, não tem o dom associativo que é um elemento intrínseco do desporto conhecido desde o seu início como "Associação de Futebol". Ronaldo vê a equipa rival; Messi vê a equipa rival e os seus companheiros espalhados por todo o campo. Os entes queridos de Ronaldo parecem partilhar essa mesma estreiteza de vistas.
Por exemplo, a informação revelada por dois amigos que assistiram a um jogo da Liga de Campeões do Real Madrid há dois anos num camarote do estádio do Barnabéu partilhado com a família de Ronaldo: chamou-lhes muito a atenção a falta de interesse da família Ronaldo pelas jogadas da equipa, pelos golos que marcaram outros dos seus companheiros, ou até pelo resultado. O foco único e exclusivo da sua atenção era Ronaldo. O próprio Ronaldo - nem sempre, mas às vezes - foi visto a cair neste alheamento no campo, incapaz de celebrar os golos da sua equipa que não foi ele a marcar. Não é de surpreender, então, que Ronaldo se tenha mostrado tão indisfarçadamente desesperado este ano por triunfar tanto a nível individual como a nível da equipa e vencer a bola de ouro; nem surpreendeu que, depois de não conseguir o menos prestigiado prémio de melhor jogador da Europa, que foi para Iniesta, fosse incapaz de ocultar o seu enfado, a sua decepção. A sua cara no ecrã, vista por milhões de pessoas em todo o mundo, era a de um homem que se sente vítima de uma injustiça colossal.Uma injustiça ainda maior por achar que o seu clube foi cúmplice. Sergio Ramos, jogador do Real Madrid, celebrou de forma efusiva no Twitter o prémio de Iniesta, jogador do Barcelona mas seu companheiro na selecção espanhola. A imprensa madrilena também o celebrou e, ainda pior, mostrou-se partidária, como alguns jogadores do Madrid, de que este ano quem deveria levar a bola de ouro era Casillas, capitão da toda-poderosa Espanha. O treinador do Real Madrid insiste que Ronaldo o deveria ganhar mas, para desgosto de Ronaldo, nem todo o clube remou na mesma direcção. O pior, a traição maior, chegou do lugar mais inesperado. Marcelo, o lateral brasileiro do Real Madrid e um dos amigos mais próximos de Ronaldo no balneário desde que o português chegou a Espanha há três anos, declarou em Junho, mesmo antes da partida da sua selecção contra a Argentina, que Messi era o melhor do mundo. Como transpareceu agora, Ronaldo deixou de considerar Marcelo um amigo.
O centro do desgosto que afecta Ronaldo é Messi, como sabem todos os adeptos das equipas rivais do Real Madrid e de Portugal. E demonstram-no quando troçam de Ronaldo, pondo o dedo na chaga com essa crueldade própria do rancor, gritando o nome do argentino cada vez que recebe a bola. Messi corrói as entranhas a Ronaldo. Federer não corrói as entranhas a Nadal. Aqui se vê a diferença entre o maiorquino e o português. Nadal, por entender que Federer é melhor tenista que ele, está em paz. Quando o vence, fantástico. Teve um bom dia, deu o melhor de si e mereceu-o. Mas quem passará à história como o grande talento nato do ténis é Federer.
Talvez Ronaldo tenha consciência em algum canto remoto do seu cérebro - como o tem todo o mundo futebolístico excepto os madrilistas mais cegos - de que Messi é melhor, mais completo, mais dotado por natureza para o futebol de associação. Messi é um jogador, mas também poderia fazer de Xavi, de director de orquestra, papel que seguramente exercerá no final da sua carreira. Ronaldo nunca poderá cumprir essa função e por isso nunca será tão grande. Ainda que no fundo o intua, é uma verdade que ele é incapaz de encarar. Da nega e da negação, como qualquer psicólogo sabe, partem os complexos. Messi não é a raiz da questão; Messi é o grande sintoma da sua infelicidade. Talvez exista alguma figura no seu círculo disposta a dizer-lhe as duras verdades de que necessita, para o seu bem-estar, ouvir. Talvez procure tratamento para este manifesto narcisismo que tanto sofrimento lhe causa. Ou quem sabe se, por piedade ou compaixão, os votantes da bola de ouro acabem por aligeirar as suas dores, ainda que apenas por algum tempo, dando-lhe em Dezembro o prémio que tanto cobiça e que todos os euros do mundo não podem comprar. Entretanto, a moral da história é simples e pouco original. O dinheiro não é garantia de felicidade. Ser giro, famoso e um grande jogador não serve de escudo contra a tristeza” (texto de John Carlin do El Pais e publicado no Público com a devida vénia)