sábado, outubro 27, 2012

Tudo o que se acha saber sobre as contas públicas, mas não se sabe

Segundo o Jornal I num texto do jornalista Bruno Faria Lopes, “a política orçamental portuguesa nos últimos anos foi responsável? Sim – pelo menos a avaliar pelo artigo de opinião “Tudo o que sempre quis saber sobre as contas públicas mas teve vergonha de perguntar”, publicado na edição do dia 22 de Outubro do “Jornal de Negócios”, da autoria do colunista João Pinto e Castro. O artigo foi amplamente partilhado e comentado nas redes sociais e na blogosfera. O autor defende que “uma opinião pública inquinada por falsidades ou meias verdades não está em condições de formar um juízo válido sobre as alternativas políticas que lhe são propostas” – e propõe-se informar a opinião pública. As passagens a negro são transcrições. Nos comentários a cada passagem corrijo os números citados (que o autor diz ter retirado de um livro a publicar, do anterior secretário de Estado do Orçamento, Emanuel Santos) e as interpretações abusivas. Por falta de espaço escolho apenas oito das 14 passagens – quase todas, contudo, eram passíveis de crítica. Nada me move contra João Pinto e Castro, mas sim contra a argumentação que apresenta e que recomeça a fazer escola numa fase em que o programa da troika evolui para cortes estruturais de despesa. O autor sugere, sem nunca o afirmar, que a política orçamental dos últimos anos não foi irresponsável – e que, por isso, não precisa de correcção. Será mesmo assim?
“As despesas de funcionamento das administrações públicas (salários mais consumos intermediários) representam 39% dos gastos totais. Porém, como abrangem a produção de serviços como a saúde, a educação ou a segurança, a verdade é que o custo da máquina burocrática do estado central se fica pelos 12 mil milhões (15,5% da despesa pública ou 7,2% do PIB). As gorduras do Estado são afinal diminutas.”
As gorduras do Estado não são “diminutas” – não vêm é identificadas nas contas com a designação de “gorduras” e não fazem só parte do “custo da máquina”. Estão em muitos casos dentro da despesa boa da educação, da saúde, da segurança, da defesa, das obras públicas, dos negócios estrangeiros e de tudo o resto que o Estado faz.
“Os juros da dívida pública deverão absorver no próximo ano 5% do PIB. É imenso, mas em 1991 chegaram aos 8,5%.”
Não faz sentido comparar as duas datas: em 1991 Portugal estava ainda longe da convergência para o euro, que baixaria muito as taxas de juro praticadas para o financiamento de toda a economia, incluindo o Estado. Em 1993 (data mais recuada na série do Instituto de Gestão do Crédito Público), a taxa de juro nominal média de uma obrigação do Tesouro a dez anos era de 9%; em 2011, às portas do euro, era de 4,6%. Em 1991 a dívida pesava 55,6% do PIB, menos de metade dos 124% previstos para 2013 – a factura dos juros pesava mais em 1991 porque as taxas exigidas normalmente ao país eram superiores às de agora, em plena crise.
“O Estado foi recentemente obrigado a corrigir as suas contas défices ocultos em anos anteriores, o que teve como consequência um aumento brusco da estimativa da dívida pública acumulada. O curioso é que essa dívida escondida foi praticamente toda contraída até 1989. Logo, as revisões recentes emendam falhas cometidas há muitíssimos anos.”
É verdade que em 2011 Portugal teve de incluir nas contas “défices ocultos” – mas não é verdade que tenham sido ocultos exclusivamente antes de 1989. Os défices ocultos são maioritariamente de empresas públicas reclassificadas (Refer, Metro do Porto e Lisboa, Estradas de Portugal, por exemplo), cujo endividamento crónico subiu muito na década passada.
“A despesa pública em proporção do PIB atingiu um máximo em 1993 (46%), depois desceu ligeiramente e só voltou a esse nível, superando-o inclusive, na sequência da crise financeira mundial em 2008. O país sabe conter eficazmente despesa pública, tanto mais que já o fez no passado.”
Não é verdade. Segundo a base de dados da Comissão Europeia (AMECO), a despesa pública estava em 44,1% do PIB em 1993. Em 2005 já era de 46,6% e em 2009 de 49,8%. Mais: os números perdem relevância para o ponto que o autor tenta provar, dada a prática recorrente de desorçamentação (tirar despesa do perímetro de cálculo do défice).
“O défice das contas públicas atingiu o seu máximo absoluto, segundo o Banco de Portugal, em 1981 – um legado de Cavaco Silva [...] Nunca mais se viu nada assim.”
A observação – de relevância limitada – é falsa. Em 1981 o défice orçamental atingiu 8,3% do PIB. Em 2009 chegou a 10,2% e em 2010 foi de 9,8%.
“Mas o investimento baixou em sete dos onze anos que terminaram em 2010 (variação acumulada de –20%), ao passo que o consumo privado só desceu num ano (variação acumulada de 19%). Quando havia dinheiro a rodos, o sector privado não investiu. Convém investigar porquê.”
O investimento privado foi sempre muito mais alto (dois a três pontos percentuais) em Portugal, em percentagem do PIB, que na média da zona euro. Não houve falta de investimento – houve, sim, investimento privado canalizado sobretudo para o sector não transaccionável (pista: o aumento desbragado do consumo privado).
“Também o investimento público foi baixando progressivamente até aos 3% do PIB em 2008. Em 2009 subiu um pouco, ficando ainda assim abaixo dos máximos do início da década. Como é possível continuar-se a invocar o excesso de investimento público para explicar as presentes dificuldades financeiras do Estado?”
A análise do rácio do investimento público sobre o PIB é pouco importante. Porquê? Em primeiro lugar devido à desorçamentação, que tirou os investimentos do PIDDAC e das contas dos ministérios (exemplo de antologia: as parcerias público-privadas, em que Portugal é um dos campeões da UE). Mais: mesmo com desorçamentação, o rácio de investimento público sobre o PIB nunca foi inferior ao da média da zona euro entre 1997 e 2011. Por fim, o Estado nunca teve uma estrutura profissional próxima da que o sector privado tem para negociar os contratos assinados fora do perímetro do défice com os privados – e para analisar o impacto marginal dos projectos na economia e nas contas públicas.
“As despesas do Estado com pessoal caíram consistentemente em proporção do PIB a partir de 2002. O tão polémico aumento dos salários dos funcionários públicos em 2009 teve um impacto insignificante nas contas públicas.”
Incorrecto. A transformação dos hospitais públicos em empresas (em 2002, 2004, 2005, 2007 e 2008) teve um impacto não negligenciável na redução “oficial” das despesas neste período, documentado pelo Banco de Portugal (“Desenvolvimentos Orçamentais: 1986-2008”). O aumento de 2,9% aos funcionários públicos pelo governo de José Sócrates no ano eleitoral de 2009 custou 420 milhões de euros, segundo indicou na altura o Ministério das Finanças. Comparações: a redução de milhares de contratados a prazo em 2013 (mais de 10 mil) poupará, em conjunto com outras medidas, 249 milhões de euros; o aumento do IMI renderá mais 340 milhões. “Insignificante”?”.