segunda-feira, maio 27, 2013

Templin, a cidade onde Merkel deu o primeiro beijo



Escreve o Dinheiro Vivo: "A ideia pareceu-me peregrina e até rimava: e se, a caminho de Tallinn, fizer escala em Templin, a pequena cidade de Brandenburg-Uckermark, onde a hamburguesa Angela Merkel se fez mulher? O meu fascínio mórbido pela chancelerina fez o resto. E foi assim que, hoje com algum eufórico arrependimento, passei um dos fins de semana mais aborrecidos da minha vida. Para que conste: localizada 85 quilómetros a norte de Berlim, literalmente no fim da linha regional que liga à capital federal (RB 12), Templin é uma localidade de 17 mil habitantes onde só uma meia dúzia falará inglês. Nem por acaso, uma das nativas que encaixam nesse perfil é a própria mãe de Angela, Frau Herlind Kasner, de 84 anos, professora de Inglês e Latim.
Eles andam aí 
Quem mo explica é Farrouk, paquistanês e dono do Venezia, o mais cêntrico restaurante italiano da terra. “Lembro-me de Angela Merkel trazer aqui os pais há uns dez anos, mais coisa menos coisa...” A conversa com Farrouk é arrancada a ferros. Como se em Templin houvesse um pacto de silêncio sobre as matérias directamente relacionadas com a chefe de governo. Outra possibilidade: Templin não morre de amores pela sua chanceler. Na praça principal, a Marktplatz, a escassos metros da Berliner Tor e da muralha medieval, pequenita mas intacta, eis a sede concelhia do SPD. Da CDU, o partido de Angela, nem um único vestígio. Mais: é sabido que a sua própria mãe, Herlind, foi ao longo da vida uma apoiante confessa dos sociais-democratas. Quanto ao pai Horst, falecido em Setembro de 2011, era um dos mais devotos pastores luteranos do Uckermark. Foi ele quem, em 1957, convenceu a família a mudar-se para Templin, onde dirigiu o seminário de Waldhof. A verdade é que também nunca morreu de amores pela CDU. Aqui em Templin rapidamente ficou conhecido por “o Vermelho”. Idealista quanto baste, conseguiu harmonizar a Igreja e o comunismo. 
Lago, doce lago 
O meu alojamento, esse, fica mesmo encostado ao famoso lago da localidade. O nome antecipava-o, de resto: Stadtsee Pension Schade. É idílico quanto baste. Não há biografia de Angela que não sublinhe a sua ligação umbilical ao plano de água. Nestas margens dóceis apanhava cogumelos, mirtilos e dedicava-se a observar as carpas que fintam o lodo e as algas. Foi também por aqui que fumou o primeiro cigarro, aos 14, e deu o primeiro beijo, aos 16. A vítima é desconhecida. Contudo, e apesar deste radioso domingo de Primavera, não vislumbro vivalma. Um pequeno aviso na porta que dá para a recepção reencaminha-me para o restaurante do lado. Uma família, acredito que clientes, e uma cozinheira, que me dá a chave do quarto n.o 1. Caramba, que privilégio, ou será por estar deserto? Poiso a trouxa e regresso ao coração de Templin. Hoje há quermesse na Marktplatz. Ou melhor, uma dúzia de alcoólatras que se dividem entre uma cerveja em copo de plástico e um wurst amostardado. Os altifalantes debitam um schlager de qualidade duvidosa, o genuíno pimba teutónico, mas ninguém abana a anca. Sintomático: estou aqui há uma boa meia hora e a carabina da barraquinha de tiros permanece estática. Dá-me ideia que os ursos de pelúcia vão dormir órfãos. Razão têm, pois, a chanceler e o seu segundo marido, Joachim Sauer, para manterem aqui a sua dacha. Alvíssima e munida de uma horta onde Angela planta batatas e framboesas. Calma é calma, e vice--versa, embora haja surpresas: há três anos entrou-lhes um louco pelo batatal adentro. Duas vezes, aliás, e sempre o mesmo. Afinal só queria entregar-lhes um bilhetinho em mão. 
Resquícios soviéticos 
Claro que me interrogo como foi possível Angela aguentar-se aqui dos 3 aos 19 anos, quando rumou a Leipzig para cursar Física. Valha-nos a paisagem, que é florestada quanto baste. Sobeja espaço. E hoje, 24 anos após a queda do Muro de Berlim, os blocos soviéticos de Templin são residuais e um nadinha mais disfarçados. Uma ou outra cor, varandas enfeitadas, alguma vegetação envolvente... Outro resquício desses velhinhos tempos da RDA é a base aérea de Gross Dölln, a escassos quilómetros. Obra da engenharia soviética, funcionou entre 1952 e o fim do regime. Dizem os especialistas, era a mais moderna de toda a Europa. Caças MiG e Yaks descolavam e aterravam e descolavam o dia inteiro. Nas horas vagas, os militares divertiam--se a roubar bicicletas. Só a Angela surripiaram três. Hoje, Gross Dölln tem menos de antro. É uma das pistas de testes favoritas da indústria automóvel. À falta de curvas, o tédio cresce na Marktplatz. É apenas entrecortado pela descoberta da tarde: o principal restaurante de Templin é... um grego. Eureka! Acto contínuo, lá me ponho a caminho do Hellas - “Grécia” no idioma helénico e para que não restem dúvidas -, onde sou recebido pelos proprietários, uma família da ilha de Corfu. Fica mesmo atrás do hospital e do lar da terceira idade. 
Austeridade helénica 
No Hellas, sim, noto algum calor humano. Mas curto ou, pelo menos, bastante aquém das expectativas. Nada como a austeridade para pôr gente a falar. Disparo com a perfídia possível: “Com que então um restaurante grego na terra de Angela Merkel...” Pressinto pânico no esgar do empregado de mesa. “Politika, politika, politika...”, responde-me Iannis, que se diria o mais velho dos três. Prossigo na moussaka e no polvo, deliciosos, assim como o excelente retsina da casa. Os relevos em gesso nas paredes, obra de um artista plástico grego radicado em Brandenburg, gritarão bem mais alto do que os meus interlocutores: ver Zeus a espezinhar um dragão com a língua de fora como que me tranquiliza. Sim, é possível. São dez da noite e o Old Bailey, o pub irlandês de Templin, há sempre um, também já encerrou. O caminho para a pensão tem um nadinha de fantasmagórico, faço-o em piloto automático. Receio apenas ser o único hóspede desta Stadtsee Pension Schade, sita no número 22 do interminável Prenzlauer Allee. Não gosto, pronto. O cansaço, porém, prega-me uma partida. Apago. Ainda bem. O frühstuck é servido a partir das 07h00 e a ligação a Berlim não é directa. Dois comboios e um autocarro, mesmo que estejamos a falar de meros 85 quilómetros. A ferrovia está em obras. Lá me despacho e solicito o check-out. Sem êxito: não aceitam cartões, nem de débito nem de crédito. Na Alemanha odeiam pagar as comissõezinhas aos senhores da Visa, Mastercard ou American Express. 
Cartões? Nein Danke! 
A frau de serviço indica-me onde posso levantar dinheiro. Parece que há uma sparkasse a uns 15 minutos a pé dali que tem um multibanco destes. Parece. Explico que vou perder o comboio, mas ela encolhe os ombros. Tenho o meu momento de sorte. Um casal berlinês está de partida - pelos vistos tive companhia durante a noite - e dá-me uma boleia até à dependência bancária. Agradeço, danke sehr, dois apertos de mão, eles vão passar o dia às termas, hoje o principal chamariz desta apodada “Pérola do Uckermark”, e noto uma bandeira turca no tecto do habitáculo do Volkswagen Lupo. Bem me tinha parecido que aquele calorzinho tinha algo de anatólio. Iniciar-se-ia assim a saga do plástico. Na primeira sparkasse dizem-me que não, cartões como os meus só no Volksbank, precisamente na supracitada Marktplatz. Vinte minutos de caminhada e, com a máxima diplomacia, pergunto novamente onde poderei extorquir dinheiro vivo duma máquina. É que aquela ali à porta também mo havia negado. “Aqui na cidade os multibancos apenas aceitam os cartões alemães. Girocard. Se quiser levantar com os seus há uma bomba de gasolina a dois quilómetros e meio daqui...”, adianta-me o caixa do Volksbank de Templin. Credo: dois quilómetros e meio? Numa gasolineira? Não estou motorizado e fazer cinco quilómetros para levantar 50 euros é inglório. Regresso à residencial, outros vinte minutos, e preparadíssimo para uma valente peixeirada. Como se o aborrecimento não bastasse, ou a improbabilidade da comunicação, ou a reduzida densidade populacional, privavam-me de honrar o compromisso legal de pagar 42 euros. Uma pernoita com frühstuck. Rogo cobras e lagartos à Merkel, afinal o apelido do seu primeiro marido, ela era Kasner, corruptela do eslavo Kazmierczak, o avó Ludwik era polaco de Poznan, e vejo-me enleado no labirinto da minha desbragada curiosidade. “Mas quem é que me mandou vir enfiar-me nesta terrinha?”, comento mentalmente. Estou por tudo. 
Uma promessazinha 
No entanto, eis que se dá o anticlímax da viagem. A provecta gerente do Stadtsee Pension Schade, com o cabelo curto à Angela, a marca da terra e outra herança do socialismo de rosto teutónico, esboça um desarmante sorriso. Empunha a minha reserva online, ou a sua cópia, e acrescentará num alemão que me vejo obrigado a compreender: “Deixe estar. Esta aqui é a sua morada em Eestland, certo? Não se preocupe que nós enviamos-lhe a factura para casa...”. Só espero que não venha com juros de mora. A verdade é que já se passaram três semanas e na caixa de correio de Viljandi não aterrou. Fiz inclusive uma promessa às meninas: se nada entretanto me chegar e em Setembro a Angela perder as eleições, talvez passemos por Templin só para eu saldar a dívida. Faço questão. E desta vez levaremos fato de banho e tudo" (texto do escritor, jornalista e blogger, João Lopes Marques, que vive em Tallin, na Estónia, Dinheiro Vivo, com a devida vénia)