sexta-feira, outubro 31, 2014

Futebol: O homem que acabou antes de tempo



“Stanley nasceu primeiro e, como mais velho dos três, o pai escolheu-lhe o nome em homenagem ao lendário Stanley Matthews. Era claro que Joop, antigo futebolista medíocre, queria o filho a driblar como o inglês driblara durante 30 anos. E durante alguns (poucos) anos, o miúdo foi o projeto pessoal de Joop, até ser trocado por outro, mais novo e talentoso do que ele e de nome Marcel. Acontece que Marcel era um nome que a avó não entendia e a família optou então por Marco. Marco van Basten. Ninguém nos pode magoar como a família e foi neste clima de tensão que o mais gracioso e letal dos pontas-de-lança nasceu há 50 anos: Joop, um pai obcecado que lhe exigia a perfeição pela repetição; Lyne, a mãe, ex-ginasta, igualmente competitiva, de quem ele terá herdado o equilíbrio que sempre nos pareceu impossível num tipo com quase 1,90m e 90 kg. Da infância e da adolescência, contam-se três episódios marcantes: o dia em que Willie lhe morreu aos pés, quando o gelo onde estavam quebrou e os olhos do amigo se esvaziaram sob a transparência; os dois AVC da mãe que a deixaram sem memória, socialmente incapaz e entregue aos cuidados do pai; e o momento em que o médico Rein Strikwerda lhe disse que tinha de deixar de jogar futebol porque tinha tornozelos defeituosos. Nessa altura, Marco negociava a sua vontade (e a do pai) com as dores do corpo (que era só dele) nos escalões jovens do UVV, de Utrecht, cidade natal dos van Basten. Joop não acreditou naquilo que lhe foi dito pelo doutor Strikwerda e levou o filho para o maior clube amador da cidade, o USV Elinkwijk. A lógica era esta: Marco melhoraria fisicamente porque seria submetido a cargas maiores e enfrentaria gente mais velha. O rapaz deu nas vistas e Aad de Mos, treinador do Ajax, chegou-se à frente por Marco, que já fora contactado pelo FC Utrecht. Optou pelo Ajax , “porque se a coisa corresse mal, podia sempre bater à porta do FC Utrectht”. Acertou à primeira.
O DELFIM
No Ajax, forjou-se uma parceria improvável. Marco van Basten tinha 17 anos e estava a começar; Johan Cruijjf tinha 35 anos, e já muitos o davam como acabado. Entre eles havia uma geração, mas depressa o primeiro se tornou protegido do segundo. Cruijff achava-o dotado, talentoso mas mole. Quis endurecer-lhe o caráter, torná-lo provocador e arrogante. “Se fores vulnerável, serás magoado”, disse-lhe. A longo prazo, o instinto assassino entranhou-se-lhe. Mas, antes, em abril de 1982, van Basten estreou-se no campeonato holandês, com 17 anos. O momento foi poético: Marco substituiu Cruijff contra o NEC e marcou um golo. Estava encontrado o sucessor. Nos anos seguintes, van Basten foi refinando a pontaria: em 1983/84, 28 golos; em 1984/85, 22 golos; em 1985/96, 37 golos; em 1986/87, 31 golos, um deles o mítico pontapé de bicicleta contra Den Bosch. Não havia limites para aquele homem a quem chamavam o Cisne de Utrecht: tinha estética, sentido de oportunidade, capacidade de choque, controlo, agilidade e remate. Era como Muhammad Ali em botas de pítons. Mas as chuteiras e as meias de van Basten escondiam tornozelos imperfeitos: a 7 de dezembro, levou uma pancada no direito e a 15 de dezembro foi operado ao esquerdo, que sempre o atormentava. Ele era ambidextro e tinha agora os dois pés condenados.
A pressão de Cruijjf (agora seu técnico) para o ter em campo forçou-o a regressar antes de tempo, com os pés ligados e infiltrados, em nome dos golos e dos títulos. Um cabeceamento certeiro do Cisne frente ao Lokomotiv Leipzig deu o primeiro troféu internacional ao Cruijjf-treinador, em 1987: a Taça das Taças.
O TRIDENTE HOLANDÊS 
Silvio Berlusconi tem muitas coisas e uma delas é a astúcia. E quando o polémico político-presidente-de-clube-magnata-dos-media decidiu que tinha chegado o momento de pôr o AC Milan no lugar, fê-lo à grande. No verão de 1987, trouxe os holandeses Gullitt (do PSV), van Basten (do Ajax), Donadoni, Ancelotti e pô-los ao lado Maldini, Baresi e Costacurta; em 1989, chegou o terceiro elemento laranja, Rijkaard. Para os comandar, Berlusconi contratou Arrigho Sacchi - e a equipa dominou o planeta durante três épocas. Nesse período, van Basten esteve e não esteve. Foi operado ao tornozelo direito em 1987 e perdeu metade dessa época entre convalescenças e recaídas. Marco foi sendo lançado, como um veterano da NBA, nos jogos importantes porque, mesmo trôpega, a sua presença significava pontos. A 1 de maio de 1981 selou a vitória (3-2) diante do Nápoles, que garantia o título ao AC Milan. Depois, teve os seus bons momentos: em 1988/89 marcou 19 golos em 33 jogos e ganhou a Taça dos Campeões (4-0, bis van Basten e de Gullitt) ao Steaua de Bucareste; e em 1989/90, fez 19 em 26 jogos e conquistou novamente a Taça dos Campeões (1-0, por Rijkaard), ao Benfica; as três Bolas de Ouro (1988, 1989 e 1992). E, enfim, teve os seus maus momentos: em 21 de dezembro de 1992, foi outra vez operado (a quarta cirurgia) e da sua carne retiraram dez pedaços de osso do tornozelo direito. Jogou dois jogos da liga italiana, participou na final da Liga dos Campeões (perdida para o Marselha). A carreira acabara e ele tinha apenas 28 anos na idade em que os futebolistas atingem a maturidade, o corpo fê-lo cair de tão podre que estava.
A LARANJA MECÂNICA, PARTE II 
Há golos que nos ficam para sempre na memória porque foram feitos no sítio e na altura certas. E Marco van Basten ficará para sempre ligado ao Europeu-1988. Magoado, como sempre, Rinus Michels optou por lhe dar o número 12, o primeiro suplente a entrar, e ofereceu a titularidade a John Bosman. Mas van Basten mudou o curso da história daquela seleção e daquele campeonato: hat trick à Inglaterra (3-1), golo à Alemanha (2-1); e o cruzamento para o cabeceamento potente de Gullitt e o remate impossível contra a URSS na final (2-0). De um ângulo morto, van Basten tornou-se imortal.
O TREINADOR 
Marco van Basten foi um jogador amargurado pelas lesões e pouco dado a dar-se e a entregar-se a amizades. E apesar de voar como um cisne não foi um anjo da guarda: esmurrou Veloso e partiu-lhe um dente ,porque não gostou da marcação no Portugal-Holanda de 1990; foi expulso por cotoveladas e chegou a atirar areia para os olhos dos adversários, para os confundir. Mas foi como treinador que se revelou a personalidade conflituosa: Edgar Davids, van Nistelrooy, van Bommel e Seedorf, na seleção holandesa, destruíram-no publicamente, acusando-o de não ter palavra, de ser inflexível e arrogante. É um treinador mediano: 3.º classificado com o Ajax em 2008/09, oitavo e quinto com o Heerenveen em 2012/13 e 2013/14 e pelo meio foi o trunfo eleitoral nas primeiras eleições em que Bruno de Carvalho participou. Hoje, está num limbo: sofre de palpitações no coração, que o forçaram a abdicar o cargo de técnico principal do AZ a favor do seu adjunto. Diz que nunca mais liderará uma equipa. Talvez tenha acabado antes de tempo. Outra vez” (texto do jornalista do Expresso Diário, PEDRO CANDEIAS,com a devida vénia)