sexta-feira, janeiro 30, 2015

Reportagem da "Visão": a vida 'solitária' de Ricardo Salgado

"Quando no domingo, dia 18 de janeiro, Ricardo Salgado, 70 anos, entrou e saiu da tradicional missa celebrada na capela da família, na Gandarinha, Cascais, pela porta das traseiras da pequena igreja, aconteceu, ao vivo e a cores, uma metáfora da queda em desgraça do ex-patrão do Grupo Espírito Santo (GES). Com indumentária simples, Ricardo Salgado teve apenas de dar uma dezena de passos para sair por um portão incrustado na alta cerca metálica verde que rodeia a sua moradia, situada paredes-meias com a igreja, e chegar à tal porta das traseiras, pela qual, na capela, se acede aos aposentos do padre. Poucas palavras trocou com alguns dos presentes, sentou-se na primeira fila, e, no fim da eucaristia, fez rapidamente o mesmo caminho de volta a casa, após persignar-se em frente do altar.
Na segunda fila, atrás de Ricardo Salgado, mas a uma distância higiénica do antigo patriarca, sentou-se o comandante António Ricciardi, 95 anos. Pai de José Maria Ricciardi, 60 anos, o primo que se tornou inimigo figadal de Salgado e vice-versa, o velho comandante chegou à igreja ao volante de um Mercedes, e entrou e saiu da capela pela porta principal. Observando de fora, as metáforas continuam a ser irresistíveis: no átrio, Ricciardi dirige-se para o seu carro; ao fundo, nas traseiras, Salgado caminha para a sua casa; e, na frontaria da pequena igreja, está esculpida uma pomba em voo, que parece agora a pique e suicida.
Hoje, até um capelão militar reformado, com a patente de tenente-coronel, como Avelino Alves, que há 14 anos dá a missa na igreja dos Espírito Santo, admite ser "complicado" gerir os conflitos que se acumularam na família.
Já lá vão os tempos das enchentes até à rua na missa da capela dos Espírito Santo. A frequência caiu para um terço. "Ia lá gente que perdeu milhões com a implosão do BES/GES e que de maneira nenhuma concebe estar no mesmo espaço que Ricardo Salgado", explica um morador da zona.
O perdão tem que se lhe diga
O padre Avelino Alves, 63 anos, reconhece que a frequência da missa, capaz de albergar uma centena de fiéis, se tornou "muito oscilatória". O ambiente, esse, é que mudou - e muito. "Há uma certa frieza", analisa o padre. "À porta, a falarmos depois da missa, já não é a mesma coisa. As pessoas estão encolhidas. Agora, os silêncios e os olhares falam mais do que as palavras."
Com Ricardo Salgado, também tudo é diferente. "Continua ali na frente, sempre no seu lugar na comunidade", elogia Avelino Alves. "Mas a maneira como as pessoas o observam, o olham, já não é a mesma." O padre, porém, não deixa cair o amigo em dificuldades: "Apesar de se sentir tantas vezes sozinho, isolado de tudo e todos, é um grande homem. Digo-lho, sempre que posso, no fim da missa. Os grandes homens veem-se nas adversidades, nas lágrimas, na dor."
Os encómios do padre estendem-se à outra trincheira da guerra familiar, na pessoa do comandante António Ricciardi. "É um homem que também admiro", diz Avelino Alves. "Sempre no lugar dele, com uma personalidade firme, e sabe Deus o que sofre. Está ali todos os domingos, levanta-se, ajoelha-se, com uma postura que impressiona."
O padre admite que as homílias não são fáceis de fazer neste contexto, mas já teve a compensação de ver Ricardo Salgado a estender a mão a António Ricciardi, quando, numa missa, pediu aos fiéis que se saudassem na paz do Senhor.
Mas, ainda assim, será que o padre vislumbra alguma possibilidade de os Espírito Santo voltarem a unir-se? Resposta pronta: "Infelizmente, não."
A defesa e as memórias
Mas não é só com a família que Salgado presta contas. O ex-banqueiro continua a levantar-se cedo para trabalhar, mas a deslocação passou a ser mais curta. De Cascais é conduzido todos os dias para o novo quartel-general, na Rua de Macau, no Estoril, perto das traseiras do CASINO. É ali que está a preparar a sua defesa nos processos judiciais que se avizinham. Para enfrentar esta demanda, constituiu um gabinete que conta com dois profissionais da comunicação, um advogado, Francisco Proença de Carvalho, filho de Daniel Proença de Carvalho, e com Rita Marques Guedes, uma espécie de chefe de gabinete, que faz a articulação entre os vários elementos da equipa. Esta gestora foi durante anos secretária-geral da Ongoing, a empresa de Nuno Vasconcellos, que é acionista de referência da Portugal Telecom. Para sua assistente direta, Salgado trouxe consigo a sua secretária do BES.
Recentemente, iniciou uma nova tarefa: escrever as suas próprias memórias, livro que deverá ser publicado dentro de um ano. "Ricardo Salgado foi uma voz influente na grande maioria dos negócios e decisões de âmbito económico e financeiro que se realizaram em Portugal. A expectativa em relação ao que irá ser publicado nas suas memórias está a deixar muita gente influente apreensiva", diz à VISÃO uma fonte próxima do ex-banqueiro.
A vida agora permite-lhe mais momentos de descanso. Quando liderava o BES, era raro o dia em que deixava o escritório antes de ser noite cerrada. Hoje, é raro o dia em que não janta em casa. Ao almoço, é frequente ser visto no restaurante Jackpot, em frente à entrada principal do CASINO do Estoril, o mais próximo do atual escritório.
A vida, os rumores e os factos
Apesar da queda do BES, DINHEIRO é algo que não falta a Ricardo Salgado. Só nas três amnistias fiscais a que aderiu (2005, 2010 e 2013) regularizou 26 milhões de euros.
O mesmo acontece com as chamadas "cabeças" das restantes quatro famílias que lideravam o grupo. Além das poupanças acumuladas, estes são ainda possuidores de um vasto património em nome individual. Mas, o mesmo não acontece com muitos outros Espírito Santo.
Dos 400 elementos da família, mais de metade trabalhava no grupo. Muitos deles recebiam dividendos sempre que existia distribuição dos lucros das empresas. Outros auferiam bónus chorudos e até mesadas. Dinheiro era algo que não faltava entre o clã. Mas, após a falência do grupo tudo mudou. Em Cascais contam-se várias histórias em surdina. Algumas senhoras que dominavam alguns círculos mais fechados da elite de Cascais são agora o alvo do falatório da mesma sociedade que anteriormente as idolatrava.
Desde dívidas em lojas, a festas canceladas, casas hipotecadas e joias vendidas, tudo surge à conversa quando o tema são os Espírito Santo. Um comerciante local confessa à VISÃO estar a par de muitas destas histórias, mas garante que, na sua loja, "ninguém da família ficou a dever um tostão". Conta um caso de uma Espírito Santo que saiu humilhada do cabeleireiro após a dona do estabelecimento "ter dito que não lhe arranjava mais o cabelo enquanto ela não saldasse as dívidas". "E tudo em frente às senhoras da sociedade de Cascais", remata.
Mais isolado
Salgado já não era muito dado a aparecer em festas sociais, mas agora, evita-as ainda mais, sobretudo para não voltar a passar humilhações, como as que aconteceram à porta da igreja, ou na sala VIP do aeroporto, onde se expôs a reações bastante agressivas de pessoas lesadas pela queda do BES.
Impedido de sair do País, o ex-banqueiro  já tentou, por três vezes, pedir autorização para viajar. Todas negadas. Não se sabe qual o propósito, mas viajar era algo que fazia todas as semanas. Se não fosse em TRABALHO era em lazer ou para visitar os netos da sua filha Catarina, casada com Philipe Amon, uma das maiores fortunas da Europa, que vivem na Suíça.
Perante esta impossibilidade, Salgado não pode desfrutar das suas habituais semanas num barco ao largo do Mediterrâneo, nem passar um período no RESORT de luxo de Txai, em Itacaré, no Estado da Baía, entre Salvador e Ilhéus. E muito menos poderá fazer algo que cumpria quase religiosamente: usufruir de uma semana de neve numa estância da Suíça.
As suas férias deste ano resumiram-se a um período na Herdade da Comporta, onde tem casa desde o verão de 2011. Apesar de se situar perto do mar, a casa é bastante afastada das zonas mais concorridas pelos populares. Para ali chegar, é necessário percorrer vários quilómetros em terra batida. E não é percetível a quem passa a pé na praia. Mas nem ali, naquele refúgio da família Espírito Santo, as coisas foram como eram.
A famosa tenda de piquenique, que era montada todos os anos na Torre, um dos sítios mais inacessíveis dos 12 quilómetros de praia que se estendem em frente à Herdade da Comporta, passou a ser uma memória. Juntava-se nela uma boa parte da família, contava com um serviço de buffet, empregados a servir e muito champagne.
Quem também deixou de partilhar as férias com Ricardo Salgado foi o outrora seu amigo Henrique Granadeiro. O ex-presidente da PT, que trocou algumas acusações com Salgado, foi visto este ano com a família a desfrutar das novas condições do complexo de Troia durante o verão.
A Ricardo Salgado resta-lhe agora a confiança dos poucos amigos, tal como se viu na missa do passado domingo, e da mulher, dos três filhos e dos seis netos.
"O grande mal é ninguém assumir as culpas"
Avelino Alves, o padre dos Espírito Santo, dá a sua versão sobre a derrocada da família
O que explica os conflitos entre os Espírito Santo?
O grande mal é ninguém assumir as culpas. Para haver perdão tem de existir arrependimento. E há muitos que não se arrependem. Acham que não têm culpas.
As missas na capela da família não ajudam a mudar esses comportamentos?
Ali cantamos e rezamos ao mesmo Deus. Mas, no fim, cada um vai comer a sua casa.
Ricardo Salgado resistirá ao que tem de enfrentar?
Está a sofrer muito, mas é um homem forte, com personalidade e caráter, humanista, cristão. Mesmo com todo o mundo contra ele, vai saber resistir, apesar de estar numa situação terrível. Tem uma força interior muito grande, seja humana seja de fé. Não acredito que o destruam" (texto do jornalistas da Visão, José Plácido Júnior, Paulo M. Santos e Clara Teixeira, artigo publicado na edição de 22 de janeiro)