O
telefone toca. Do outro lado da linha está a assistente de Alberto João Jardim.
Pergunta a Guilherme Silva se vai estar na Madeira no dia seguinte. O ex-líder
do Governo Regional e ex-líder do PSD/Madeira quer marcar um almoço de trabalho
com o seu ex-braço direito em Lisboa. Percebe-se alguma urgência em marcar o
encontro. Mas Guilherme Silva não tem previsto voo para o arquipélago no dia
seguinte.
Foi
eleito para o Parlamento em 1987, com 44 anos. Foi líder da bancada do PSD e
chega ao fim da sua carreira como vice-presidente da AR
A
única viagem que faz nas próximas horas é pela ruas de Lisboa, a bordo do carro
oficial do Parlamento conduzido pelo motorista que o acompanha há uns bons anos
e que só lhe reconhece elogios. O deputado eleito pela primeira vez para São
Bento em 1987, nas listas do PSD madeirense, segue no banco de trás do carro,
onde repousam os jornais do dia. A viagem é curta até ao Hotel Ritz. É lá que o
social-democrata corta o cabelo com Artur Freixinho, o homem que lhe cuida da
aparência e de uma boa parte de notáveis da vida política portuguesa. A relação
entre ambos tem décadas e foi retomada na Duque de Palmela, em 1977, depois do
conhecimento travado em Moçambique, onde
Guilherme Silva, 72 anos, esteve entre 1970 e 72 em serviço militar. “Aqui
cortam-me o cabelo. Nos outros sítios da política cortam-me a cabeça”, atira,
sorridente, enquanto a manicure começa a arranjar as unhas.
A
afirmação não é inocente. Sobretudo agora, que o social-democrata ficou a saber
pela imprensa que não é opção para Miguel Albuquerque, sucessor de Jardim na
liderança do PSD/Madeira e do Governo Regional, para as legislativas de
Outubro. Por estes dias, Guilherme Silva entrou na derradeira contagem
decrescente para o fim da sua actividade parlamentar, actividade que exerceu
durante 28 anos consecutivos.
De
frente para o espelho, o deputado é obrigado a reconhecer não a
“inevitabilidade” da sua saída de S. Bento - ao mesmo tempo em que Jardim sai
de cena - mas a “circunstância de que a minha geração, que é a do Alberto João
Jardim, cumpriu e deu o máximo que tinha a dar a favor da causa pública, da
social-democracia e da autonomia”.
Os
próximos dias são de arrumações, depois de uma primeira quinzena de Agosto que
será passada na ilha do Porto Santo, onde tem casa e onde nada todos os dias de
manhã. No seu gabinete na Assembleia da República (AR) - que já foi de António
Oliveira Salazar, de Marcello Caetano ou de Leonor Beleza - há pouco mais do
que papéis e “uma meia dúzia de peças decorativas”. O suficiente para caber
numa pequena caixa de papelão. “O gabinete é muito bom. Tem casa de banho
privativa em mármore e vista para a Calçada da
Estrela”, descreve o vice-presidente da AR, desde 2005.
Jardinista
com nome próprio
Guilherme
Silva responde pelo seu nome, mas a dada altura do seu percurso profissional
passou a estar na vida política orgulhosamente associado ao histórico líder
madeirense. Foi o homem da sua confiança em Lisboa. O convite de Jardim para
aderir ao partido aconteceu num dos muitos reencontros na ilha. “Vou enviar-te
uns papéis”, atirou Jardim. Era a ficha de inscrição no partido sob proposta do
líder.
O
então advogado sem militância partidária já vivia em Lisboa. Esse facto também
terá pesado na hora de escolher o ‘substituto’ de Jardim no Parlamento, que foi
sempre o cabeça-de-lista mas que nunca assumiu funções em Lisboa. Guilherme
Silva chegou pela mão dos pais à capital, com18 anos, quando o pai, já com a
família constituída - o deputado tem duas irmãs mais velhas - fixou-se em
Lisboa para ingressar na Faculdade de Direito, onde Silva viria a ingressar
mais tarde e a ser aluno de Marcello Caetano.
A
vida profissional começou num escritório de advogados em Lisboa, onde o pai
tinha sociedade. Mesmo depois de assumir funções no Parlamento, aos 44 anos,
não abdicou de exercer advocacia. “Queria estar na política com
auto-suficiência profissional e económica para que quando fosse preciso bater
com a porta poder faze-lo”. Nunca o fez. Mas sempre recusou o regime de
exclusividade dos deputados porque isso seria “transformar o Parlamento em
câmara de funcionários e o Parlamento não pode ser isso. Tem de representar o
país nas várias áreas”. Passou a dividir o trabalho no escritório com o filho
mais novo, 36 anos, também advogado. O filho mais velho, 38 anos, vive em
Harvard, onde é professor na área da neurobiologia.
A
lealdade e solidariedade de Jardim - paga com a mesma moeda no sentido
contrário - terão sido determinantes para que permanecesse em S. Bento por
quase três décadas. Guilherme Silva admite que divergiu muitas vezes do seu
líder. Mas as dicordâncias nunca atingiram um nível insurportável ao ponto de
criar ruptura entre dois amigos que andaram juntos no liceu e que se tornaram
cúmplices nas longas travessias Lisboa-Funchal a bordo do paquete Angra do
Heroísmo, depois de cumprida a recruta do serviço militar obrigatório em Mafra,
ao mesmo tempo que Miguel Cadilhe, Henrique Granadeiro ou Ângelo Correia
adquiriam competências na mesma recruta
para defender militarmente o país.
Uma
das divergências públicas foi assumida quando foi aberta a sucessão de Jardim
no PSD/Madeira. “Nunca concordei com a hostilização que ele assumiu em relação
à candidatura do Miguel Albuquerque”. Outra discordância, mais antiga, foi
sobre o timing para apresentar o projecto de revisão constitucional proposto
pelos deputados madeirenses. “Geri como pude o calendário para apresentar a
proposta. Ele queria que fosse logo no início desta legislatura, mas considerei
que não era oportuno abrir a discussão quando o país estava concentrado no
cumprimento do programa de ajustamento”. Jardim respeitou. “Vi-o acolher
opiniões minhas e modificar as suas posições sem grande dificuldade. Não foi
frequente, mas aconteceu” (risos).
A
folha A4 na Portela
As
conversas com Alberto João não eram fáceis, admite Guilherme Silva, que assumiu
muitas vezes o papel de intermediário do ex-líder madeirense na relação com os
outros três deputados eleitos pelo PSD/Madeira.
A
convivência, contudo, permitiu apurar técnicas para assegurar a atenção de
Jardim, alguém que “pensa em 1001 coisas ao mesmo tempo”. Duas técnicas:
aproveitar a passagem de Jardim por Lisboa para ir ao seu encontro no aeroporto
da Portela, “onde ele estava ali uma hora e meia quieto à espera de embarcar” e
sintetizar numa folha A4 os argumentos de defesa de um assunto sobre o qual já
era conhecida a discórdia de Jardim. “Se fosse mais do que uma folha ele deitava-as para o lixo”,
garante, entre sorrisos.
Jardim
seguia atentamente o trabalho dos seus deputados em Lisboa, que reuniam por
norma à quinta-feira num almoço de trabalho para interpretar as orientações que
chegavam da comissão política regional do PSD. Num destes almoços foi afinada a
defesa pública do voto contra no Orçamento do Estado para este ano, numa
violação da disciplina de voto (a favor) da bancada do PSD. Foi instaurado um
processo disciplinar aos quatro deputados (Guilherme Silva, Hugo Velosa,
Francisco Gomes e Correia de Jesus) que seguiram a indicação de Jardim em vez
da ordem de Passos Coelho, líder do PSD.
O
processo disciplinar ainda decorre na direccção da bancada parlamentar dos
sociais-democratas mas “é para o lado que eu durmo melhor”, ironiza Guilherme
Silva. “Não se apaga de um dia para o outro a relação que se estabelece com
quem nos elegeu na esperança da defesa dos seus interesses”.
No
tempo em que Cavaco Silva foi primeiro-ministro (1985 a 1995), lembra, o
deputado também violou a disciplina de voto em alguns diplomas que considerava
lesivos dos interesses dos madeirenses. “Não houve consequências. Houve
compreensão”.
Um
madeirense insider
Talvez
porque vive entre Lisboa e o Fuchal - onde vive a mãe e uma irmã e onde tem um
escritório que o obriga a ir pelo menos três vezes por mês à ilha -, Guilherme
Silva sempre foi visto como um insider, em vez de outsider, na estrutura
nacional do PSD. A protecção de Jardim e a confiança de Mário Montalvão Machado
(1921-2010), um dos fundadores do PSD que liderou a bancada parlamentar
social-democrata entre 1987 e 1991, também ajudaram.
Foi
este último que lançou Guilherme Silva no restrito grupo de deputados com
responsabilidades dentro do grupo parlamentar e na direcção da bancada:
primeiro como vice-presidente na área dos direitos fundamentais, Justiça e
Adminsitração Interna e depois para presidente da Comissão de Assuntos
Constituicionais, a primeira comissão. “Registo que no início da minha vida
parlamentar tenha tido a confiança do dr. Montalvão Machado para o exercício
dessas funções. Isso abriu-me a porta para o resto da minha carreira como
parlamentar”.
Nessa
altura eram frequentes os trabalhos entrarem noite dentro. As pausas nos
trabalhos eram curtas e davam apenas para comer uma sandes mesmo em frente ao
Parlamento. Quando conseguia empurrar a fome para a conclusão dos trabalhos,
parava no café de São Bento, onde comia como Miguel Macedo o famoso bife. “A
idade permitia que se comesse um bife um pouco mais tarde. Hoje isso não é
aconselhável”.
Não
havia grande margem para farra e copos pela noite dentro: Guilherme Silva não
era o típico deputado deslocado em Lisboa. Tinha mulher e os dois filhos a
viver na zona de Belém, onde ainda vive, e sempre que podia fugia para Sintra
ao fim-de-semana, onde tem casa e onde aproveita para ir ao mercado comprar
frutas e legumes. “É nos mercados que se sente o pulsar da sociedade”.
Carrega
até hoje alguns hábitos dos tempos em que assumiu a liderança da bancada
parlamentar do PSD, entre 2002 e 2004. Um deles é a visita frequente ao Vela
Latina, à beira Tejo, próximo de casa, e para onde convergem figuras da
política nacional. Durante o almoço com a Tabu, lá estava Jorge Sampaio a
almoçar com amigos na véspera de receber o prémio Nelson Mandela. “Grande
coincidência”, desabafa. Nunca perdoou Sampaio?, perguntamos. “Nunca concordei
com Sampaio”, corrige Guilherme Silva.
O
deputado madeirense era líder da bancada do PSD quando Sampaio usou a ‘bomba
atómica’ e dissolveu o Parlamento em 2005. Santana Lopes era o então
primeiro-ministo, convidado a formar governo depois de Durão Barroso apresentar
a sua demissão em 2004 para ir presidir à Comissão Europeia, em Bruxelas. O
convite de Durão Barroso para assumir a liderança da bancada do PSD, reconhece
hoje, acabara por levar Guilherme Silva a assumir as mais altas funções dentro
da estrutura nacional do partido. Mas também o obrigara a descolar de Jardim.
“Liguei para ele e disse-lhe que se me candidatasse a líder da bancada passaria
a ter uma lealdade prévia com o líder do partido, Durão Barroso. Ele
incentivou-me a avançar”, recorda.
O
exercício das funções correu de feição até à dissolução da AR. Em 2005, Santana
Lopes, que perdera então as eleições para José Sócrates, convida-o para se
manter na liderança da bancada ou para assumir a vice-presidência da AR. O
madeirense escolheu a segunda opção. Mantém-se nas funções da vice-presidencia
da AR desde então e até hoje. Os últimos dias foram de disponibilidade máxima
para o exercício do cargo. Com Cavaco Silva em visita de Estado à Bulgária e
Assunção Esteves em visita oficial à Guine-Bissau, Guilherme Silva goza do
estatuto protocolar do Presidente da República. O futuro pode passar por São
Bento? Guilherme Silva tem a certeza de uma coisa e arrisca outra: não é
candidato a coisa nenhuma e Jardim ainda pode avançar para a corrida a Belém.
“Ele pode aproveitar a oportunidade para apresentar a sua ideia para o país.
Imagine que se abre a discussão de liderança no PSD depois das legislativas?
Ele quer deixar sementes”, garante.
Guilherme
Silva, o fiel jardinista, pode ser chamado a ajudar. Enquanto isso não
acontece, sabe que o telefone vai deixar de tocar tantas vezes. Sabe também que
vai retomar a sua actividade profissional e dedicar mais tempo à família e às
netas, a mais velha com três anos e a mais nova com seis meses. Sabe ainda que
sempre que puder vai cumprir um velho hábito: continuar a oferecer os típicos
bolos de mel que traz da ilha a cada vez que lá vai. “Para as pessoas
perceberem que a Madeira é mais doce do que às vezes pensam” (reportagem doSol, com a devida vénia)
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