Provocador, sem papas na língua e, assumidamente, “gozão”,
Alberto João Jardim é admirado por uns e detestado por outros. Após 37 anos à
frente do Governo Regional, uma coisa é certa: a Madeira nunca mais será a
mesma. Perdeu o pai aos 11 anos e tornou-se um "menino mimado":
"Até me apertavam os sapatos para eu não magoar as costas". Na
juventude aborrecia-se na escola e "quis ser livre". Era "um
gozão", pregava partidas aos professores e conquistava os colegas - e as
namoradas - com anedotas. A farra foi tal que demorou mais de dez anos a fazer
o curso de Direito, entre Lisboa e Coimbra. E precisou da vigilância da mãe,
que se juntava a ele em época de exames. Entrou na política após o 25 de Abril
e ficou 36 anos, apesar das tentativas da esposa Ângela de o demover da
carreira política.
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Ainda alguém lhe chama ‘Janinha'?
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O meu pai, que faleceu quando tinha 11
anos, foi praticamente o único que me chamou assim.
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Como foi lidar aos 11 anos com essa perda?
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Foi um choque muito duro porque sou filho
único e o mundo quase girava à minha volta. O meu pai era a companhia para
tudo: as idas ao futebol, ao restaurante, aos cafés, aos espectáculos. Houve um
choque grande e um sentimento de solidão muito profundo, que depois comecei a
tentar contrariar. Se calhar, o meu feitio expansivo deve-se ao esforço que fiz
nessa idade para combater a solidão. Tinha de comunicar com os outros.
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Era o seu cúmplice de brincadeiras?
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Sim, de tudo. Por exemplo, não havia ainda
os livros do "Tio Patinhas" em português, mas publicava-se "Os
Mosquitos", "O Cavaleiro Andante" e eu tinha um baú enorme lá em
casa cheio dessas coisas. Ele começou a comprar-me o "Pato Donald" e
eu aprendi a ler com cinco anos. Aos sete, já lia o jornal. Comecei a ler em
castelhano porque os desenhos animados do Walt Disney eram em castelhano.
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O seu pai teve tempo de lhe transmitir
algum ensinamento para a vida?
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Guardo uma imagem que nunca esqueci.
Estamos nos princípios dos anos 50 e, um dia, apareceu um pescador que vinha
descalço na rua. Ele conhecia o meu pai, o meu pai estendeu-lhe a mão e eu, por
distração ou qualquer outra coisa, não estendi. Devia ter uns 9 ou 10 anos
nessa altura. Levei ali mesmo um tabefe! E disse-me: "Tens que dar a mão a
toda a gente!". E, a partir daí, aquilo ficou-me sempre marcado. Hoje
chego a qualquer sítio e começo a cumprimentar toda a gente, não só por causa
do cargo, mas porque é um hábito.
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O seu avô materno substituiu a figura do
seu pai?
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Sim, foi o meu segundo pai. A minha mãe e
eu vivíamos com ele. O avô era um homem rural, do Norte da ilha, um ‘self made
man'. De soldado chegou a oficial, fundou a sopa dos pobres, foi da Santa Casa
da Misericórdia, foi vereador da Câmara Municipal 12 anos ou 16 anos e ainda
procurador à junta-geral. Um homem que jogou bridge até aos 96 anos.
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Era um homem severo?
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Não, era um homem teimoso. Rígido nas
posições que tomava, discutia, mas não era agressivo. Agora, era inabalável
naquilo em que acreditava.
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Herdou a teimosia dele?
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Um pouco. Mas faço mais humor. O meu pai
era um homem que gozava com tudo e com todos e dizem que ele tinha um piadão.
Eu não uso bem a teimosia, uso mais o humor. E, por isso, tanta gente me
detesta. Sentem-se gozados em vez de se sentirem confrontados.
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É verdade que o seu avô tentou proibir
durante algum tempo o namoro entre os seus pais?
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É verdade. Se passar na casa do
Quebra-Costas, que era da minha mãe estão lá umas barras de ferro. O meu avô
mandou pô-las na janela que dá para o rés-do-chão. Se a minha mãe quisesse
namorar, era atrás das barras de ferro.
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Depois do falecimento do seu pai tornou-se
uma criança mais protegida?
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Extremamente protegida. Era uma altura de
mão-de-obra barata e, lá em casa, tínhamos duas empregadas domésticas. Comecei a
sentir que estava a ficar apaparicado demais e que o meu desenvolvimento não
era bem como o desenvolvimento dos meus colegas. Eles já faziam coisas que eu
não fazia, até do ponto de vista físico. Lá em casa tinham sempre muitos
cuidados comigo. Não me deixavam amarrar os sapatos porque podia-me fazer mal à
coluna! Coisas deste género! Por volta dos 13 anos percebi que não podia
continuar assim.
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O menino protegido tornou-se rebelde.
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Não é rebelde, no sentido contestatário.
Tornou-se livre! Tinha uma vantagem: a minha mãe tinha a mania que eu tinha de
saber línguas muito cedo. Aos sete anos, comecei a aprender francês; aos nove,
comecei a aprender inglês. Quando fui para o liceu, já tinha lido toda a
História de Portugal. Por isso, tornei-me num cábula!
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Como já tinha aprendido, aborrecia-se nas
aulas...
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Aborrecia e comecei a ficar um traquina.
Havia professores que já não me podiam ver!
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Pregava partidas.
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Sim... Comecei a aprender alemão um ano
antes de ir para o sexto ano. Eu, até ao quinto ano, tive sempre turmas de
rapazes, mas, no sexto, aos quinze anos de idade, parecia um galo palheiro no
meio de um galinheiro. Com aquela idade parva, tudo o que pudesse exibir às
meninas, aproveitava. Como sabe, o alemão dos austríacos é muitíssimo mais
cerrado. Então, imitava a pronúncia austríaca. E era tudo na gargalhada! Até
que, um dia, a minha professora de alemão, disse: ‘Alberto, dou-te um 20 para
te dispensar de exame de admissão à faculdade, mas por amor de Deus sai da
Madeira' (risos). Era um pouco esse o ambiente que tinha dentro do liceu.
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Depois foi para Direito e começou a vida
académica em Lisboa.
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Estive três anos em Lisboa. Saí daqui com
17 anos. Na altura, não havia aeroporto na Madeira e isso significava
despedir-me da família, o que dava um certo jeito. À medida que corria as casas
de família, davam-nos, na altura, cem pataquinhas, cem escudos, que davam um
jeitão enorme para um estudante. Estamos a falar de 1960. Andei à solta em
Lisboa. Tinha a sensação era de que o mundo era todo meu! No primeiro ano, nem
livros comprei. No segundo ano, fiquei envergonhado de ter chumbado- a minha
mãe ficava aflitíssima - e lá fiz o primeiro ano. Mas, no terceiro ano de
Lisboa, tornei a não fazer nada. Então tomei a decisão: " Isto não é vida,
vou mas é para Coimbra".
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Em Lisboa, o que é que encontrou que não
tinha na Madeira?
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Tudo. Não posso entrar em pormenores, mas
conheci desde as classes mais altas e sofisticadas, à vida da noite mais rasca
que pode haver. E não foram três anos perdidos, porque eu lia muito e a experiência
de vida para quem sai das ilhas...
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Porque é que diz que não quer entrar em
muitos pormenores sobre Lisboa? A sua esposa zangava-se?
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Ela já sabe o que a casa gasta.
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Teve muitas namoradas na adolescência?
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Um cavalheiro não fala dessas coisas.
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Então falemos de Coimbra. O que é que
mudou na vida académica?
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Pude pôr mais ordem na minha vida, mais
método de trabalho, embora tenha sido sempre uma vida muito boémia. Ainda
chumbei mais um ano em Coimbra.
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Vivia no Farol das Ilhas.
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Ainda hoje existe. Está lá uma grande vaca
de madeira, que é uma pipa por dentro e sai vinho pelas tetas. Foram precisos
12 homens para levar aquela vaca para casa. Lembro-me que andei uns dias com o
sangue pisado nos ombros.
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Porque lhe chamavam Barão nessa altura?
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Talvez pelas minhas fanfarronices de
pequeno. Havia uns filmes em que apareciam os barões disto. Então eles, no
gozo, em alemão, diziam Baron von Quebra Costas, que era o nome da rua onde eu
vivia.
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E, no liceu, teve outras alcunhas, por ser
muito arrumadinho.
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E por ser muito branquinho... Chamavam-me
Dona Branca! A Dona Branca da literatura portuguesa.
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Entre Lisboa e Coimbra passaram dez anos
para fazer o curso.
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Não, oito! Depois fui chamado para a
tropa. Dez anos é a contar com o curso terminado no serviço militar. Fui chamado
15 dias depois de casar. Fui às Canárias em lua de mel e, quando cheguei, dois
dias depois, fui para Mafra. A chamada lua de mel com o sargento.
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Como foram esses três meses em Mafra?
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Ali a tropa era a sério. Era duro, mas
havia uma cultura de unidade militar. Foi óptimo para mim, sempre
indisciplinado e gozão.
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E tinha jeito para o serviço militar?
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Às vezes, tinha dificuldade nas provas
físicas. Por exemplo, tenho vertigens, mas fazia as provas que tinham abismos.
No que eu tinha mais dificuldade, era a subir umas paliçadas. Uma vez tive azar
e fiquei preso pelos arreios, parecia que estava a voar pendurado naquilo. De
resto, não tive problemas. Em tiro, tive sempre a melhor nota militar, tinha a
minha pontaria. Hoje, com a idade, a mão é capaz de já não estar tão firme.
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O seu primeiro discurso político, na
década de 60, foi em honra de Salazar...
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Na altura, pela educação e pela família
que tinha - pessoas que tinham trabalhado com o anterior regime - eu era
admirador do Salazar. Não nego. E, portanto, vieram pedir-me para falar numa
coisa que se chamava ‘Associação 28 de Maio' que, no fundo, era um grupo de
legionários bêbados todos a gritar numa voz de aguardente ‘Viva Salazar'. Era
um caos lá dentro. Lá fiz o discurso e vim-me embora.
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Em Janeiro de 2011, sofreu um enfarte do
miocárdio. Temeu pela vida?
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Quando se está naquelas circunstâncias não
se pensa na morte. A natureza está tão bem feita que, quando temos um problemas
desses, estamos a pensar mais "agora como é que eu saio desta?". Só
depois, passado algum tempo, começamos a reflectir e a pensar "Eu podia
ter morrido, como seria a reacção da família, da política". Mas só muito
depois se pensa nisso. Na altura, é o imediato. E ainda bem que é assim para
não entrarmos em pânico.
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Assusta-o essa ideia?
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Não! Eu sou crente. A ideia da morte não
me assusta. Não vou andar assustado com uma coisa que é inevitável..
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Tem três filhos: duas filhas e um filho.
Algum seguiu as pisadas do pai ou ainda quer seguir?
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Penso que eles foram muito influenciados
pela mãe que é anti-militância política e nunca gostou muito da minha opção de
vida. Eles têm as suas opções políticas. O rapaz chegou a andar comigo em
campanha. Mas nenhum estava inscrito no PSD, só um genro, que até é membro da
Assembleia Municipal aqui do Funchal. Os outros, agora que eu ia sair, é que se
inscreveram para votar nestas eleições internas.
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A sua esposa Ângela alguma vez tentou
demovê-lo da carreira política?
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Desde o primeiro dia (risos). Mas levou
sopa! (risos)
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O que lhe dizia?
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Há um episódio engraçado que agora já
posso contar. Para ela aceitar que eu entrasse no primeiro mandato, foi um
sarilho. Eu tinha a minha vida mais ou menos feita, estava bem. E, para a
acalmar, eu dizia que era só um mandato e depois passava aquilo a outro. Então,
ela pediu-me para assinar um papel a prometer que fazia só um mandato. Mas o
meu avô dizia que nunca se assina nada! E eu disse-lhe: "Assinei o do
casamento e já vais com sorte!" (risos). Lá fui andando. Cheguei ao fim do
sétimo mandato - já vou no décimo - e ela vira-se para mim e diz:
"Prometeste que só fazias um mandato! Eu ainda fiz sete! A partir de
agora, só vou onde me apetecer!" E tem sido assim. Nos três últimos
mandatos, praticamente desapareceu do mapa.
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Quando apanhou o susto com a saúde, a sua
esposa tentou demovê-lo de regressar à política?
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Não, porque ela viu que eu podia ficar
ferido se viesse com essa conversa. Poderia sentir-me diminuído ou achar que
não estava capaz. Curiosamente, depois disso, ela nunca mais repetiu essa
conversa.
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Disse, numa entrevista, que costuma
ensinar os seus netos a ser mal-criados. Como assim?
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Disse isso na brincadeira. Os netos são
uma coisa engraçada. Às vezes, parecem um brinquedo. E vê-los sempre a ouvir
"não faças isso, não faças aquilo". Muita rigidez. Isto é um bocado
de egoísmo... Mas eu gosto de ver a natureza a expandir-se! Para rir um bocado,
ensino-lhes umas diabruras. As coisas certas ensinam os pais e as avós. Eu faço
a parte lúdica e ensino coisas meias tontas.
[Entrevista conduzida pela jornalista do Económico, Marta
Rangel, publicada dia 6 de Fevereiro de 2015, emitida no mesmo dia no ETV e
agora disponibilizada no site do jornal]
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