O Funchal tem, a
partir da próxima semana, a única praia do país adaptada para invisuais. O
projecto, orçamentado em cerca de 100 mil euros, começou a ser testado nesta
quinta-feira e vai permitir que pessoas invisuais possam de forma completamente
autónoma ir ao mar, usufruindo também de todos os equipamentos de apoio
balnear. A ideia foi posta em prática na Praia Formosa, a maior da cidade, e
consiste na colocação na água de uma linha de bóias equipadas com sensores, que
informam, através de sinais sonoros, os utentes sobre a profundidade do mar,
indicando também a distância da praia e a direcção da mesma. Toda essa
informação é transmitida para uma bracelete usada pelos banhistas invisuais,
que têm, a qualquer momento, a possibilidade de pedir ajuda aos nadadores-salvadores
através de um botão SOS. A ideia de criar uma praia adaptada chegou à Câmara do
Funchal através do orçamento participativo. O projecto vencedor foi uma praia
adaptada para pessoas com dificuldades de locomoção, mas a autarquia quis ir mais
além e alargou a ideia aos invisuais e às pessoas que, não sendo cegas, tenham
dificuldades de visão.
“Quisemos ir mais
longe, porque consideramos que fazia todo o sentido o Funchal, que é uma cidade
de praia e turística, ter esta oferta”, explicou ao PÚBLICO o vereador Domingos
Rodrigues, responsável pela execução dos projectos saídos do orçamento
participativo. “Somos uma cidade muito procurada por turismo sénior, e por isso
esta praia não é apenas para os funchalenses mas também para os turistas que
nos visitam”, acrescentou o responsável municipal, dizendo que o sistema
respeita todas as normas e exigências nacionais e internacionais. Com pouca ou
nenhuma legislação nacional sobre esta matéria – a que existe é pouco exigente
–, a Câmara do Funchal adaptou o modelo
francês para este tipo de praias, um dos
mais avançados do mundo, para concretizar o projecto.
“Cumprimos todos
os critérios do nível 4 [o mais elevado] do modelo francês”, adianta Domingos
Rodrigues, dizendo que “não é vergonha nenhuma” copiar os melhores. “Se o
modelo existe e é bom, é melhor não inventar e aproveitar o que já foi testado
com sucesso.”
Na Praia Formosa,
foi construída uma zona de sombreamento, colocado um passadiço em madeira para
as cadeiras de rodas circularem até à zona adaptada, e os vestiários foram
remodelados, bem como os duches e sanitários. A colocação de sinalética
específica e a criação de zonas de estacionamento para pessoas portadoras de
deficiência completam as infra-estruturas de apoio.
“Adquirimos três
cadeiras de rodas especiais, duas que flutuam (para os que não sabem nadar) e
outra que permite ao utilizador deixar a cadeira na água, nadar, e depois
voltar à cadeira para regressar à praia.” Todas têm rodas que permitem circular
com facilidade em qualquer tipo de terreno, incluindo areia, facilitando assim
o acesso ao mar. “Fizemos tudo de forma a que as pessoas sejam o mais autónomas
possível na praia.” A ideia da autonomia, de permitir que as pessoas se
desloquem na praia sem ajuda de outras, foi a trave mestra de todo o projecto.
E a parte dedicada aos invisuais, que precisam de ajuda para entrar, nadar e
sair da água, foi o ponto de honra dos promotores.
Utilização
gratuita
O equipamento
Audioplage adquirido, com tecnologia francesa, engloba as bóias sinalizadoras e
as braceletes, e permite a utilização simultânea de cinco pessoas. “Este foi o
primeiro passo, e sei que agora não podemos voltar atrás. É um direito das
pessoas, e elas vão querer mais. Fico satisfeito com isso”, afirma Domingos
Rodrigues, dizendo que o projecto é pioneiro em Portugal, e até na Europa, onde
são poucos os países com estas infra-estruturas para invisuais.
“Fora de França,
este sistema para invisuais só existe numa praia grega e num espaço balnear
espanhol”, afirma o vereador, vincando que estes equipamentos são “obviamente”
de utilização gratuita. “O objectivo foi, e é, proporcionar a todos um simples
e prático acesso à praia.”
Tudo isto foi
feito com pouco menos de 100 mil euros. O maior investimento foi feito nas
cadeiras de rodas anfíbias e todo-o-terreno — cada uma custa três mil euros —,
nas muletas que flutuam e no sistema Audioplage. “A maioria das
infra-estruturas de apoio necessárias já existiam, só tivemos que efectuar
algumas adaptações”, explica o vereador, frisando que o objectivo é que a praia
funcione durante todo o ano.
“Os únicos
condicionalismos são as condições do mar e a meteorologia, tal como de resto
acontece para todas as pessoas”, ressalva o responsável pela operacionalização
dos projectos do orçamento participativo. “Ninguém vai nadar com a bandeira
vermelha, não é?”
Com um tecto de
500 mil euros, previa-se que o orçamento participativo apoiasse os cinco
melhores projectos, mas acabaram por ser aceites seis. “Recebemos 44, alguns
deles muito interessantes, e conseguimos aprovar seis”, sintetiza Domingos
Rodrigues, explicando que todos eles encaixam no orçamento previsto. Neste âmbito, e para além da praia adaptada,
a Câmara do Funchal vai avançar, por exemplo, com um memorial para animais de companhia
integrado num parque para cães, com um skate park, que ficou em segundo lugar
nos projectos aprovados, e com equipamentos para carregamento de telemóveis na
rua.
“Numa altura em
que somos cada vez mais dependentes dos smartphones e dos tablets, e sendo nós
uma cidade turística, é uma facilidade que temos o dever de oferecer a todos os
que cá vivem e os que nos visitam”. O orçamento participativo foi uma das
bandeiras eleitorais da coligação Mudança, constituída pelo PS, Bloco de
Esquerda, PND, MPT, PTP e PAN, que conquistou em 2013 a autarquia funchalense
ao PSD.
“Somos novatos
nisto, pois foi a primeira vez que fizemos um orçamento participativo, mas
temos recebido elogios de vários quadrantes, e muitas autarquias do país
têm-nos contactado para saber o que estamos a fazer e de que forma vamos
implementar os projectos”, garante Domingos Rodrigues, que trocou as salas de
aula da Universidade da Madeira, onde é docente, por um gabinete na Câmara do
Funchal.
Um projecto em
nome da dignidade
No areal da praia
Formosa esta quinta-feira ainda era dia de ensaio. Os equipamentos não estavam
ainda totalmente operacionais, e os técnicos da câmara municipal andavam às
voltas com os manuais, baterias solares, cadeiras e bóias. Numa cadeira de
rodas, a poucos metros dali, Hernâni Silva observa curioso a azáfama. Para ele,
tudo aquilo que está a nascer na Praia Formosa, é uma “grande vitória”. O
projecto de praia adaptada, que foi o mais votado do Orçamento Participativo do
Funchal, é da autoria deste funcionário municipal de 45 anos. “Sempre fui um
amante da praia, e nenhuma das que frequento são verdadeiramente adaptadas às
pessoas com dificuldades de locomoção”, lamenta Hernâni Silva, sublinhando que
para uma praia ser acessível “não basta” hastear uma bandeira e apresentar-se
como tal. Hernâni Silva queria uma coisa prática e discreta. “Não gosto de
estar dependente dos outros, e sempre que queria ir nadar estava à mercê da boa
vontade de alguém”, explica, lamentando a falta de “dignidade” dos sistemas que
existem em algumas praias. Em algumas existem gruas hidráulicas, que carregam
as pessoas até à água. “É preciso colocar fitas e mais fitas, é tudo um
espectáculo, um palco que se cria na praia para as pessoas com deficiência, que
não é digno”, exemplifica, olhando para este novo “pedaço” da Praia Formosa
como um modelo de simplicidade e autonomia. José Figueira não vê, mas sente
essa facilidade. Invisual desde jovem, devido a uma doença progressiva, também
foi à Praia Formosa tentar perceber essa mudança. Adora o mar. O cheiro. A
liberdade que a água proporciona. Até agora, era sempre uma sensação
partilhada. “Tenho que ir sempre acompanhado por alguém, para me referenciar”,
explica. Agora, José Figueira já pode ir nadar sozinho. “É um projecto
louvável, como são todas as iniciativas que visam a inclusão”, diz, admitindo
que tem algumas reticências sobre a forma como tudo irá funcionar no dia-a-dia.
“Com miúdos a jogar à bola, música nos bares, pessoas a conversar, será difícil
no início lidar com o sistema de avisos sonoros.” Mas para ele não existem
barreiras nem impossibilidades. Fisioterapeuta de profissão e dançarino por
paixão, José Figueira já fez muitas coisas que a maioria julga vedadas a
invisuais. “Comigo, essa conversa do coitadinho do ceguinho não existe”,
afirma, dizendo que já fez ski aquático, ski na neve, e viveu muitas outras
experiências. “Quero viver muitas mais”, diz José Figueira, que desde 2011
integra o grupo de dança inclusiva ‘Dançando com a Diferença’. Por isso, ir ao
mar sozinho será apenas mais uma conquista pessoal. “Esta iniciativa vem ajudar
e muito, porque ninguém gosta de depender dos outros, muito menos em situações
tão simples como sentir o mar à nossa volta.” Para Hernâni
Silva é uma dupla conquista. Poder ter uma praia com acesso facilitado, e
sentir que a ideia foi sua. “Tenho que agradecer às autoridades por terem
apoiado a ideia, e à população por ter voltado nela”, salienta, pensando que
talvez mais autarquias adquiram agora uma nova consciência sobre a importância
de incluir todos os cidadãos na vida das cidades. Noutras praias, noutras
cidades, Hernâni Silva já alertou para esta problemática, mas a resposta é
sempre matemática. “Dizem sempre que não têm dinheiro, e que estão a tentar
melhorar dentro das possibilidades do orçamento.” A verdade é que as cidades
são lugares difíceis, e as praias podem ser caóticas para quem está sentado
numa cadeira de rodas. “Temos que serpentear pelas toalhas, rezar para as rodas
não ficarem presas, e depois esperar que um nadador-salvador nos auxilie, o que
nem sempre acontece.” Uma odisseia marítima, que Hernâni Silva espera que na
próxima semana, quando a praia estiver operacional, termine. “Pelo menos que
seja mais fácil, para pessoas com dificuldades de locomoção, sejam elas permanentes
ou não, aproveitarem um dia de praia da forma mais natural e independente
possível.” (fonte: Publico, texto do jornalista Márcio Berenguer)
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