quinta-feira, outubro 01, 2015

Legislativas-2015: Porque falham as sondagens

Podemos confiar nos estudos sobre intenção de voto? Menos disponibilidade dos inquiridos e desfasamento das bases de dados podem explicar a maior divergência de resultados, mas a verdade é que ninguém vigia as empresas de sondagens
As ovelhas estão no redil mas o pastor anda ausente. Em Portugal, as empresas que realizam sondagens não são alvo de qualquer tipo de vigilância técnica. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) recebe a ficha das sondagens, ato obrigatório antes da divulgação dos resultados, mas não inspeciona estas operações. "Não há qualquer tipo de fiscalização efetiva", nota António Salvador, 57 anos, presidente do Conselho de Administração da Intercampus e ex-presidente da Associação Portuguesa das Empresas de Estudos de Mercado e de Opinião.  
Operações técnicas cruciais, como a escolha da amostra a partir da qual se realiza o estudo ou o trabalho de campo, que muitas vezes obriga a entrevistas pessoais com simulação de voto, não são vigiadas. "Nunca me aconteceu e não conheço nenhuma empresa a que tenha acontecido", declara António Salvador, que há mais de três décadas trabalha no setor e foi fundador de três empresas de estudos de mercado.  
Luís Valente Rosa, 58 anos, o pioneiro nos anos 80 das sondagens à boca de urna divulgadas nas noites eleitorais pelas televisões, confirma a mesma situação. "Nada. Não inspecionam nada. Mesmo que a sondagem seja realizada através de simulação de voto, com urna, não há qualquer verificação", nota o autor de Inquéritos e Sondagens - Dicionário, um e-book à venda na coleção UnyLeya. "No setor, toda a gente sabe fazer uma ficha técnica, que resume os dados necessários para realizar o depósito da sondagem. Mas ninguém verifica a conformidade da ficha técnica com o trabalho efetivamente realizado", nota o ex-docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, onde lecionou durante 20 anos as cadeiras de Estatística e de Métodos e Técnicas de Investigação Social.
Quando é realizada uma sondagem para divulgação na Comunicação Social, a Lei n.º 10/2000 de 21 de junho, publicada durante o governo de António Guterres, obriga à realização de um depósito com a respetiva ficha técnica. As empresas têm de enviar uma lista de 21 elementos, de que constam, entre outros, o nome do responsável técnico, a descrição do universo sobre o qual se recolhe a informação, o número de pessoas inquiridas e o questionário aplicado. Este depósito tem de ser feito até meia hora antes da divulgação, no caso de sondagens pré-eleitorais, ou até à hora da divulgação, quando se trata de uma sondagem realizada no dia das eleições. Os estudos sobre intenção de voto feitos para outros clientes (órgãos de soberania, empresas ou partidos políticos) estão isentas de depósito obrigatório.
"Olhamos para todas as sondagens com a celeridade possível", nota João Triães, do departamento de Análise de Média e Sondagens da ERC. Contudo, reconhece, a análise é quase sempre feita a posteriori, altura em que o estudo já foi publicado na Comunicação Social. Evocando não ter autorização para fornecer a informação, o funcionário da ERC não indica, contudo, qual o número de técnicos, o seu perfil ou o tipo de equipamento de que o regulador dispõe para estas operações. "Temos um equipa qualificada", limita-se a dizer. ?A VISÃO questionou posteriormente a ERC sobre este aspeto, mas até à hora de fecho a edição não obteve resposta.  
Pedro Magalhães é investigador do Instituto de Ciências Sociais e dirigiu o centro de sondagens da Universidade Católica entre 2005 e 2009. "Que eu saiba, a ERC verifica se os centros de sondagens dão toda a informação a que estão obrigados pela lei e pelas deliberações e diretivas da ERC. Creio que a sua intervenção se limita a isso. Não conheço casos de intervenção na execução das sondagens, nem de vistorias nem de inspeções. Pedem informação, sim, mas aquela que é suposta constar da ficha técnica e dos depósitos obrigatórios."
Problemas telefónicos
Quando saiu um relatório sobre sondagens, encomendado pela ERC em 2009, Pedro Magalhães comentou-o no blog Margens de Erro. Na sua longa análise, criticou a incursão dos três relatores por áreas metodológicas, defendendo que a escolha da técnica de sondagem mais adequada era uma responsabilidade das empresas. Além disso, apontou defeitos à análise, nomeadamente a falta de controlo estatístico que permitiu chegar à conclusão de que "os desvios foram maiores nas sondagens que recorreram a entrevista telefónica".  
A realização de inquéritos através de linha de telefone, contudo, tem estado na berlinda. O Santo Graal das sondagens é a ideia de que os inquiridos devem ser escolhidos aleatoriamente, ficando assim a atividade no científico cálculo de probabilidades. Quando a escolha é aleatória, o processo fica inteiramente entregue à sorte, não havendo contaminação de fatores externos, e a probabilidade de ser "sorteado" é igual para todos.  
Mesmo numa situação ideal, uma sondagem é sempre uma operação em que uma parte (a amostra) é tomada pelo todo (o universo). Por causa disso, existe um desvio, possível de determinar, chamado margem de erro. Este é sempre garantido quando se realiza um inquérito e é também conhecido por "erro amostral".  
Contudo, os responsáveis pelas empresas de sondagens têm de lidar com o mundo real. E circunstâncias várias impedem-nos, aos pollsters, como lhe chamam os norte-americanos, de realizar uma amostra completamente aleatória. Primeiro, porque nunca se conhece o universo total (as listas estão desatualizadas ou não incluem certos indivíduos, como os sem-abrigo ou os internados em hospitais) e, por isso, não é possível extrair uma amostra 100% aleatória. Em segundo lugar, a base de dados mais convencional e mais utilizada, a lista de telefones fixos, está cada cada vez mais desatualizada. Num artigo para o New York Times, Cliff Zukin, antigo presidente da Associação Americana para a Pesquisa da Opinião Pública, nota que nas eleições de 2014 (as mid term elections) uma amostra baseada em linhas de telefone fixas "omitiria três quintos do público norte-americano, três vezes mais do que acontecia em 2008".
A culpa deste fenómeno é do telemóvel. Nos EUA, cada vez mais gente o usa exclusivamente. Em Portugal, ninguém sabe qual é a dimensão do fenómeno dos cell only, mas o número de linhas telefónicas fixas diminuiu muito: passou de 418 para 251 por mil habitantes, entre 2000 e 2010.  
Espirais de silêncio
Face à inexistência de uma lista de telefones móveis por local de residência, os inquiridores não podem substituir o fixo pelo móvel. "Por isso, acredito que haja um problema com habitantes jovens de zonas urbanas, que são sub-representados nas amostras", nota António Salvador. Nos Estados Unidos da América, também é assim. Segundo dados citados por Pedro Magalhães no livro Sondagens, Eleições e Opinião Pública, os cell only são mais novos, usam mais a internet e tendem a apoiar mais o Partido Democrata. Para Rui Oliveira e Costa, 67 anos, responsável pela empresa Eurosondagem, a situação é hoje pior do que há 20 anos, mas melhor do que há cinco. "Nos últimos anos, estabilizou o número de utilizadores de telefone fixo."
Além deste, os pollsters têm de lidar ainda com outro problema que perturba a cientificidade da sua tarefa: a percentagem de pessoas que se recusa a responder a um inquérito é cada vez maior. No seu artigo, Cliff Zukin lembra que nos anos 70 era aceitável uma taxa de resposta de cerca de 80%, enquanto hoje o número dos que aceitam responder pode chegar apenas aos 8%.  
O facto de cada vez mais gente não aceitar responder aos inquéritos pode criar graves enviesamentos nas sondagens. Por exemplo, quando um líder político descredibiliza os estudos de opinião pública, como fez Paulo Portas - "Vai ser uma bebedeira de sondagens e eu peço às pessoas que se mantenham lúcidas", disse antes das eleições de 2011 -, é provável que os eleitores que com ele se identificam se recusem a responder aos questionários. Esta "espiral de silêncio" pode subestimar gravemente a votação num partido, como tradicionalmente acontecia em França com a intenção de voto na Front National de Jean-Marie Le Pen. "Vivemos da disponibilidade das pessoas que entrevistamos", nota António Salvador. "Se andarem sempre a demonizar as sondagens, receio que aumentem as recusas e que haja um enviesamento ainda maior."
Zukin atribui a estes problemas a dificuldade em prognosticar os resultados das recentes eleições no Reino Unido e em Israel. Em Inglaterra, as sondagens davam um empate entre trabalhistas e conservadores, mas o partido de Cameron venceu nas urnas por uma larga maioria (37% contra os 30% obtidos pelos trabalhistas de Ed Miliband). Em Israel, a quatro dias das eleições, os estudos de opinião davam um avanço de quatro lugares no parlamento à União Zionista. Mas acabou por ser o Likud do incumbente Benjamim Netanyahu a vencer a contenda, tendo conquistado 29 dos 120 lugares do Knesset, bem à frente dos 24 obtidos pelo seu principal rival. Face a este quadro, qual é a solução para as sondagens? "O antigo paradigma quebrou e ainda não percebemos como o substituir. Temos de passar por um período de experimentação para perceber o que vai funcionar no futuro", sentencia Zukin no seu artigo no New York Times.
Cara a cara
"Quando se tenta medir algo junto de pessoas, não é possível fazê-lo do mesmo modo que um termómetro mede as temperaturas", nota Pedro Magalhães. Além dos problemas já referidos, o especialista realça que o próprio questionário, a ordem das perguntas e as respostas têm de ser alvo de especial análise. Pedro lembra que o British Election Study, que há 50 anos acompanha o comportamento eleitoral dos ingleses, indaga agora sobre a importância da ordem das perguntas numa consulta. Se a questão "Em quem vai votar?" surge no início ou no final, os resultados para o Labour ou para os Tories são diferentes. "Ao responderem primeiro a perguntas sobre economia ou desemprego, por exemplo, as pessoas mudam a sua opinião", nota Pedro Magalhães.
"É assim tão estranho que diferentes empresas, com diferentes métodos de amostragem, que utilizam questionários diferentes, tenham resultados discrepantes?", questiona Pedro Magalhães? A pouco mais de dois meses das eleições legislativas, as sondagens mais recentes, realizadas por diferentes empresas e com metodologias diferentes, dão entre 36% a 38% ao PS e entre 33% e 38% à coligação PSD/CDS. Os dados estão coligidos no site Popstar, mantido pelo Instituto de Ciências Sociais e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. "Acho perfeitamente normais estas diferenças. Se fossem todas iguais havia aqui um cambão", nota Rui Oliveira e Costa.
A Intercampus foi uma das empresas que realizou uma das mais recentes sondagens sobre a intenção de voto nas próximas legislativas. Com 1014 entrevistas, realizada entre 26 de junho e 4 de julho, optou pelo método da entrevista presencial com simulação de voto em urna. "Eu continuo a achar que a entrevista cara a cara é a melhor técnica", sublinha António Salvador.  
Para estes estudos utiliza-se a técnica da Random Route. Depois de selecionadas certas freguesias ou locais a partir de uma matriz onde se cruzam as variáveis região e habitat, os entrevistadores são enviados para o terreno com um roteiro. As regras desse percurso são aleatórias. Por exemplo, os inquiridores partem do posto do correio, devem virar à direita ou à esquerda quando encontram um cruzamento e têm de realizar entrevistas segundo um certo intervalo, que pode ser de quatro, cinco ou mais alojamentos. Quando batem à porta, selecionam um dos ocupantes da casa segundo uma regra cega (por exemplo, questionam a pessoa que celebrou o último aniversário). De seguida, simulam o ato de voto numa urna transportada pelo entrevistador.  
Para Luís Valente Rosa, uma das vantagens desta técnica porta a porta é "evitar um maior número de indecisos". Mas também é mais cara. Segundo uma fonte do setor, um estudo destes, com cerca de mil entrevistas, pode atingir os 18 mil euros. Para uma operação realizada num dia de eleições, à boca da urna, o custo dispara: 35 mil a 40 mil euros por sondagem. Os preços também podem variar muito. Segundo outra fonte, algumas empresas de sondagens realizam estudos com base em mil entrevistas telefónicas por apenas... 1000 euros. "Um inquérito com entrevistas pessoais é três vezes mais caro do que um realizado por telefone", nota Rui Oliveira e Costa.
Outra escolha com que se deparam os pollsters são as correções realizadas após os inquéritos. Quando a amostra obtida tem desvios significativos em relação ao padrão conhecido da população (normalmente descrito pelo recenseamento), os técnicos realizam ponderações. Pedro Magalhães exemplifica: "Como se distribuem os indecisos? Faço correções baseadas na distribuição da população por sexo? Ou por nível de educação? Pondero em relação ao voto nas últimas eleições?" Estas escolhas aproximam as sondagens de uma arte? "Não digo que é uma arte porque estamos sempre à procura de uma explicação", nota Pedro Magalhães. "Mas alguns resultados são condicionados pelas convicções e crenças de quem está a fazer o estudo", adianta.
Luís Valente Rosa considera essenciais estas ponderações ou aquilo a que os técnicos também chamam "estratificação a posteriori". Recusa, contudo, que elas sejam necessárias para antever o que vai acontecer no dia das eleições. "As sondagens não são previsões", nota. Para este especialista, a discussão sobre os "erros das sondagens" não se coloca porque estão a ser estudadas coisas diferentes. "As sondagens pré-eleitorais avaliam a intenção da população como um todo, num certo momento. No dia das eleições, as sondagens à boca de urna inquirem o universo dos votantes", nota. E, desafia: "Se fossem a mesma coisa, que sentido faria falar no dia de reflexão antes das eleições? Se as pessoas já tivessem decidido em quem votar, para quê esse dia?"  
Para ele, também há outra justificação para a discrepância entre resultados das sondagens e das eleições. Antes, os eleitores eram fiéis de um partido, como os adeptos de um clube de futebol. Hoje, as mensagens políticas são mais indistintas e acabam por ser as características pessoais dos candidatos a influenciar o voto. "Um dia, o Freitas do Amaral talvez seja do PCP", ironiza. "Houve uma laicização da sociedade e só ficou a pequena política", sentencia. E é por isso que, nestas condições, o erro não fica à margem (texto do jornalista Paulo Chitas, artigo publicado na VISÃO 1169)

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