terça-feira, setembro 20, 2016

Venezuela: O sonho premonitório do defunto (excelente reportagem do Expresso)

Há quem tenha dito um dia que, antes de morrer, ele sonhou com um país comandado pelo homem que acabou mesmo por lhe suceder. Mas, para milhões de venezuelanos, o sonho do eterno comandante acabou por se transformar num pesadelo e o prometido paraíso socialista num inferno onde a morte pode espreitar a cada momento, seja pelo cano de um arma ou pela escassez de bens essenciais. Este é o retrato triste e desamparado de uma nação mergulhada na mais grave crise da sua história. Bem-vindos à Venezuela, onde há gente que passa três dias numa fila à procura de algo para comer e não consegue mais que um sabonete.


Chávez não morreu. É o segredo mais mal guardado de toda a Venezuela. Os olhos dele podem estar sempre à espreita numa escadaria ou no topo dos prédios mais altos de Caracas. Ou até na rua, ao virar de uma esquina. Não há nada que não se passe na cidade que não escape ao seu olhar. Não há um único dia em que não apareça na televisão a falar aos venezuelanos. Ou que não marque presença numa das maiores avenidas da capital, ora a abraçar uma idosa, ora vestido com o equipamento de beisebol, uma das suas maiores paixões e o seu grande sonho de criança. Hugo Rafael morreu a 5 de março de 2013. Mas, mais de três anos depois, Chávez continua vivo.
“Tenho estado a ouvi-lo falar e tenho uma dúvida - digamos que é mais uma curiosidade. Porque é que o chama sempre ‘Hugo Rafael’ quando se está a referir a ele?” pergunto a Victor.
“Para o colocar num plano terreno e não o elevar a uma espécie de Olimpo dos deuses, como muitas pessoas acabaram por fazer”, responde Poleo, um homem que esteve com Chávez no governo nos três primeiros anos, mas que acabou por se distanciar do líder da revolução bolivariana.
Chávez não morreu porque habita agora um outro plano existencial. Ele já não é simplesmente presidente, tão pouco apenas comandante, ou autoproclamado herdeiro de Simón Bolívar, libertador dos povos sul-americanos. Ele é o “comandante supremo e eterno”, como é referido inúmeras vezes nas cerimónias oficiais e nos discursos do seu sucessor, Nicolás Maduro. Mais de três anos depois da morte de Hugo Rafael, como diria Victor, não há ninguém que esteja mais presente no dia a dia e na mente dos venezuelanos do que Chávez. Tanto dos que sempre o apoiaram incondicionalmente, como dos seus críticos mais ferozes.
É domingo de manhã e os olhos de Chávez, pintados no muro que dá para o campo, “assistem” a um jogo de beisebol entre crianças no bairro 23 de Enero, uma das zonas historicamente mais fervorosas no apoio ao comandante e casa de um dos mais perigosos coletivos e bandos armados da cidade, os “La Piedrita”. Todos os momentos e pretextos são bons para os venezuelanos jogarem beisebol e “então agora, em tempo de férias, tem sido todos os dias”, explica Alfonso Quiñones enquanto vai dedicando um olhar de orgulho ao filho Leonel, equipado de branco e azul, as cores dos “Los amigos”. Este jogo já está ganho e se ganharem o próximo são campeões.
“Ainda me lembro de um jogo que o Chávez disputou aqui neste campo quando era jovem”, conta Alfonso, que nasceu mais ou menos na mesma altura do comandante. Mal se consegue ouvir o que diz com a quantidade de tambores, cânticos e gritos de incentivo dos adeptos e familiares que preenchem a pequena bancada do campo, mesmo que este seja apenas um jogo entre crianças. A poucos metros dali, numa zona mais elevada do bairro, fica o Quartel da Montanha, de onde o então tenente coronel Hugo Chávez tentou um golpe de estado contra o presidente Carlos Andrés Peres, em 1992. O golpe falhou, mas o mito nascia naquele dia. A apenas uns 200 metros do quartel e do campo de basebol está uma das provas da devoção, no sentido mais religioso que o termo pode adquirir, da população da favela de 23 de Enero. Ali, as imagens de Chávez convivem lado a lado com as de outros santos e santas do catolicismo, num pequeno santuário improvisado. O povo da favela “canonizou-o”. Para a paróquia de 23 de Enero, Chávez é “santo”. Uma mistura entre religião e política que Hugo Rafael tão bem soube fazer em vida, dirá Victor Poleo.

Chávez “não morreu”, mas o país que deixou ao ascender ao plano de “comandante eterno”, e sob o qual o seu espetro continua a pairar, parece estar a morrer aos poucos, de dia para dia. Os fantasmas dessa quase morte começam a chegar ainda a madrugada vai bem alta. Rondam as entradas dos supermercados de Caracas logo por volta das 2 ou 3 da manhã, para assim poderem tomar a melhor posição possível na fila. E esperar. Esperar várias horas por algo que pode nunca chegar a vir.
“A mim toca-me as sextas-feiras. Todas as sextas tenho de deixar de trabalhar para vir para as filas”, diz Anelore Barreto, enquanto aguarda em conjunto com uma grupo de várias dezenas de pessoas à porta de uma parafarmácia. Desta vez precisa de fraldas e leite em pó para o filho Matias, de apenas dez meses. O marido ainda está no trabalho, mas assim que sair vem ter com ela para dali seguirem para a segunda fila do dia, desta feita no supermercado. “Já não tenho quase nada em casa para comer. Temos de comer pouco para conseguir que a comida chegue para vários dias. Faço duas refeições por dia e a partir das quatro da tarde acabou-se. Se houver pão ainda posso comer um pouco, caso contrário não volto a comer mais nada até à manhã seguinte.”

“Há venezuelanos que já só estão a fazer uma refeição por dia”, denuncia por sua vez Velquis Alvarado, enquanto aguarda na extensa fila que preenche toda a rua que dá acesso ao supermercado “Central Madeirense”, no bairro de Chacao, em Caracas. Aos 59 anos está ali em jejum desde as 4 da manhã. O filho, que é arquiteto e “trabalha para um ministério”, também seguiu esta manhã para o trabalho de estômago vazio. Nos bons dias, conta Velquis, ela consegue mandar-lhe uma pequena salada com um bocado de ovo em cima para o almoço. Mas hoje não foi um desses dias.
“Como é possível alguém dizer que aqui na Venezuela há comida suficiente para alimentar três países com a dimensão do nosso?”, questiona, por sua vez, Anita Ochoa, que não esconde a indignação perante as palavras da ministra nos Negócios Estrangeiros venezuelana, Delcy Alvarez, num encontro em maio passado no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos). “Nunca tínhamos passado o que estamos a passar neste momento na Venezuela”, garante Anita. “Jamais na vida, nem na quarta república, algum dia passámos por estes sacrifícios. Aqui há crianças que já procuram comida no lixo porque não têm nada em casa.”
O Expresso testemunhou, durante uma semana, o desespero que se vive às portas dos supermercados nas ruas de Caracas: o de Velquis, por exemplo, que nos mostra como em apenas mês e meio as calças lhe ficaram mais largas; ou o de Alicia, que em três dias à procura de algo para comer não conseguiu mais do que um sabonete.
As longas filas fazem-se todos os dias para aceder aos produtos de uma cesta básica cujo preço é regulado pelo governo e que são assim consideravelmente mais baratos. Com uma inflação que vai superar este ano os 700% no país - a mais elevada no mundo em 2016 e a maior em toda a História da Venezuela -, estas filas são a única forma que muitos venezuelanos têm neste momento para aceder aos alimentos. Mas nem sempre se pode vir para a fila dos produtos regulados. Tecnicamente, só estão autorizados a aparecer apenas um dia por semana, consoante o último número da cédula de identidade. A juntar a essa limitação há as acusações de corrupção na distribuição dos alimentos. “Os coletivos tomaram conta deste supermercado”, denuncia Ana Mercedes. Os “coletivos” são organizações comunitárias dos bairros e favelas de Caracas que apoiam o “chavismo” e o governo do presidente Nicolás Maduro. Existem sob o pretexto de fazerem obras sociais, culturais ou artísticas no seio de cada comunidade, mas têm uma faceta mais negra: acabam em vários casos por degenerar em gangs armados e grupos paramilitares violentos. “Eles apoderaram-se do supermercado e controlam quem entra e quem não entra e quem tem acesso aos alimentos. Entra a mulher, entra a amante, entra quem eles bem entendem e nós ficamos sem nada. Não é justo!”

Muitos não duvidam em classificar o que se está a passar na Venezuela como uma “crise humanitária”. É o caso de Diana D’Agostino, mulher do atual presidente da Assembleia Nacional, Henri Ramos Allup, e que desenvolve vários projetos sociais no âmbito do apoio às populações. “O governo nega a crise porque não lhe convém admitir que haja uma crise humanitária. E prefere que o povo morra, que os meninos morram, antes de abrir um canal humanitário. Há meninos que à segunda-feira chegam à escola e não conseguem cantar o hino nacional na sala de aula porque desmaiam, porque não jantaram na noite anterior nem tomaram o pequeno-almoço da parte da manhã. É muito triste aquilo que se está a passar na Venezuela.”
É final de tarde em Caracas e chove torrencialmente. A multidão tenta abrigar-se junto ao beiral de um prédio enquanto faz fila para o pão. Rodolfo não tem guarda-chuva e optou pela solução mais prática que tinha à mão: um saco de plástico a proteger a cabeça e dois nos pés, um em volta de cada sapato. “Estamos aqui de joelhos, num genuflexório, e para quê? Para comprar pão... Achas isto normal? Claro que não é. Mas por aqui temos de ter cuidado com o que dizemos…”
Rodolfo tem 65 anos e já está reformado. Lamenta o estado do país enquanto ajeita os suspensórios que lhe seguram as calças: “Antigamente isto era um país que tinha tudo. Íamos a uma padaria a qualquer hora do dia, das 8 da manhã às 8 da noite, e havia sempre pão. E havia de tudo, tudo, estávamos a viver num paraíso e não o sabíamos. Até que o perdemos”.
Nesta padaria, como em tantas outras na cidade, o pão é racionado e cada pessoa só pode levar consigo o máximo de duas “canillas” (que corresponde a uma baguete). Ou seja, pode até acontecer que Rodolfo esteja na fila para depois, quando chegar o momento, bater com o nariz na porta. O acréscimo da procura dos venezuelanos às padarias tem uma explicação: com a escassez de farinha de milho pré-cozida com que costumam fazer as tradicionais “arepas”, tiveram de se virar cada vez mais para o pão de trigo como solução alternativa. “Já houve momentos difíceis no país, mas nunca passámos por uma crise assim”, afiança Cristiano Neto Santos, português que está há 60 anos na Venezuela e que é dono de uma das padarias mais afamadas da capital, a “Rosita”. “Quando pomos os sacos do lixo lá fora ao final do dia vemos que há muitas pessoas que estão à espera para os abrirem e vasculhar o que puderem encontrar, nem que seja um bocadito de pão. É triste ver isso a acontecer, como é triste ver pessoas à chuva para ter de comprar uma coisa tão básica como pão.”

O que explica, afinal, este desastre económico e a escassez de alimentos e medicamentos que a Venezuela está a atravessar? Para muitos esta era uma tragédia já anunciada. “O modelo económico do socialismo está a meter água por todos os lados e nós avisámos há anos que, mais cedo ou mais tarde, o barco viria ao fundo”, diz José Guerra, economista e atualmente deputado da oposição pela coligação “Mesa de Unidade Democrática”, que em dezembro do ano passado tomou pela primeira vez controlo da Assembleia Nacional depois de 17 anos de domínio “chavista” ininterrupto. Em 2009, Guerra subscreveu um documento, em conjunto com mais meia centena de destacados economistas venezuelanos, que alertava para os perigos do caminho que estava a ser seguido. “Tudo isto é resultado de um conjunto de políticas erradas do Estado que passaram por expropriações e nacionalizações, asfixia da economia através de políticas estatais de regulação dos preços e controlo cambial”, afirma a economista Sara Levy-Carcientes, que subscreveu o documento. “Quando o petróleo estava alto não se estabeleceram mecanismos contracíclicos. Havia dinheiro para importar tudo o que se quisesse para o país, mas agora que o petróleo está em baixa não só não há dinheiro para importar, como não se produz o que se necessita dentro do país porque o aparelho produtivo interno foi totalmente desmantelado.”
Victor Poleo também não tem dúvidas. O especialista em economia petrolífera afirma que as receitas do petróleo foram mal utilizadas. “O país esbanjou e desperdiçou esse dinheiro num projeto político, que era o de fazer um ‘socialismo à venezuelana’. Com muito dinheiro pensava-se que se ia fazer a grande revolução socialista ocidental do século XXI. Mas resultou num fiasco, porque o dinheiro foi desperdiçado. As consequências já eram previsíveis: viria uma etapa de pobreza, empréstimos internacionais que não são pagos, colapso da economia...
“Uma das coisas que se costumam dizer é que a pobreza diminuiu nos últimos anos, que o dinheiro circulou entre as pessoas”, começa por dizer Feliciano Reyna, diretor da organização não governamental “Ação Solidária”. “Mas foi uma ilusão: puseram até algum dinheiro na mão das pessoas, é verdade, mas não se fez nenhum tipo de investimento estrutural para o bem-estar e saída da pobreza a longo prazo.” Os números estão aí para comprovar isso. “Quando Chávez chegou ao poder, a taxa de pobreza no país estaria à volta dos 45%. Hoje em dia está nos 73%, segundo um estudo feito por uma universidade independente. Como é possível um retrocesso tão grande nos últimos anos?”
Mas o governo de Nicolás Maduro tem outra explicação, que encontra eco em vários sectores da população. É o caso de José António Martinez, 63 anos, que aguarda numa fila à porta de um supermercado em Caracas. “Esta guerra já leva 17 anos porque aqui subiu ao poder um ‘sambo’. Sabes o que é isso? É o filho de um negro com um índio. Isto é uma guerra! Fizeram uma guerra a este senhor (Nicolás Maduro) e ao anterior também (Hugo Chávez). Isto é uma sabotagem.” Martinez partilha da retórica governamental de que os grandes empresários e interesses capitalistas bloquearam a produção para derrubar o governo chavista. “O propósito de tudo isto é criar descontentamento popular para que não votem no socialismo e votem antes nos outros partidos. Foi o que já aconteceu com a Assembleia Nacional, em dezembro. Na altura, a oposição disse-nos que as últimas filas seriam para votar… Pois olha agora como estão as filas! Esta situação a quem prejudica? O povo e o governo. Então quem organiza isto tudo? A oposição e as máfias, meu caro…”
Catia La Mar, cidade situada a cerca de 40 quilómetros a norte de Caracas, no estado de Vargas, é uma zona povoada de portugueses e lusodescendentes. Não há um supermercado, padaria, sapataria ou outro tipo de comércio que não seja de um português e que não esteja também a ser afetado pela situação que o país atravessa. Mas também por estas paragens encontramos quem defenda a explicação do governo. No centro de distribuição da PDVAL (Produtora e Distribuidora Venezuelana de Alimentos) há também fila, mas pelo menos a quase certeza de se sair dali com um saco de plástico com alguns produtos da cesta básica no interior, como arroz, leite, manteiga ou azeite. Hector Montilla é o coordenador do CLAP (Comité Local de Abastecimento e Produção), organizações criadas em abril deste ano pelo Estado para distribuir alimentos diretamente pela população. “Estamos a levar com uma guerra económica já há dois ou três anos, mas nós vamos manter-nos firmes. Pensavam que com a morte de Chávez morria tudo? Não. Aqui temos os filhos de Chávez. Temos Maduro. E vamos acabar com eles!”
“Bachaquero.” O nome veio de “bachaco”, uma formiga gigante que consegue carregar grandes quantidades de carga nas suas costas. Surgiu primeiro para identificar as pessoas que se dedicavam ao contrabando de gasolina e alimentos na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, mas generalizou-se depois para designar todas aquelas pessoas no país que conseguem adquirir produtos de primeira necessidade ou outros para depois os revenderem no mercado negro a um preço muito mais elevado. O governo declarou-lhes guerra aberta e classifica-os como uma praga que está a minar a economia venezuelana e o povo.
“Um arroz regulado aqui custa-te 400 bolívares”, começa por explicar Paul John Romero, 35 anos, que está à espera para comprar produtos regulados em Catia la Mar. “Mas nos bachaqueros esse mesmo arroz pode custar-te até 3 mil bolívares. Estão a vender ilegalmente, a sobrepreço. São uma máfia que se aproveita do desespero e das necessidades de alimentação das pessoas.” Ainda assim, Paul não vai atrás da retórica oficial da “guerra económica”: “É mentira, pura invenção. As pessoas acreditam nisso porque na Venezuela há bastante ignorância”.
Para fazer face à difícil situação que o país enfrenta, o presidente Nicolás Maduro anunciou em julho mais um grande projeto de âmbito nacional, a “Missão de Abastecimento Soberano”, que tem como objetivo o controlo estatal de todo o circuito económico, desde a produção até à distribuição final. “O caminho não é o capitalismo e mais privatizações e entregar estes país às oligarquias. O caminho é mais socialismo, mais revolução e mais poder popular”, garante Maduro. “A política de controlo e planificação centralizada da produção vai acabar com o país”, adverte, por sua vez, a economista Sary LevyCarcientes.
Para os críticos do regime, o controlo estatal está a asfixiar a economia venezuelana, nomeadamente a “política do preço justo”, através da qual é o próprio Estado que estipula o preço de venda de determinados bens. “Imagina que um queijo me custa 10 bolívares a produzir, mas o Estado obriga-me a vender a 5, em perda. Quem é que quer investir no país nestas circunstâncias?”, pergunta Melanio Escobar, jornalista e ativista das redes sociais.
“Obviamente, o modelo económico do socialismo está a meter água por todos os lados”, afirma o economista e deputado da oposição José Guerra. “Com altos lucros do petróleo ninguém escutou, estavam ébrios com os dólares. Pois os resultados agora são terríveis”, acrescenta Victor Poleo, especialista em economia petrolífera e vice-ministro da energia de Chávez entre 1999 e 2002. “Isto é legado de Chávez. Diz-se muito que Chávez podia ter controlado isto… É falso. Não o poderia controlar.”
Já não é só o pão que Dante tem de racionar. “Sofro de hipertensão e o medicamento é muito difícil de conseguir. Até nisso tenho de poupar. Tomo um comprimido a cada dois dias. Deveria tomar um todos os dias por recomendação médica, mas já nem isso posso fazer.” Maurício Blanco, que está na fila para a mesma padaria, sofre de um problema semelhante: “Fui operado ao coração e não consigo o medicamento de que tenho necessidade. Têm de o trazer de fora do país. Aqui nas farmácias não há nada”.
Maurício segura na mão um pequeno papel com o nome dos comprimidos de que precisa enquanto conta uma história ainda mais trágica - a do amigo que morreu há três dias no hospital Domingo Luciani, em Caracas, por causa de uma simples apendicite. Tudo porque não havia médicos ou materiais com que operar. Com 38 anos e três filhos menores, agonizou até à morte.
A grave crise no sector da saúde não afeta apenas o acesso das pessoas a medicamentos no seu dia a dia, mas também as condições estruturais dos hospitais e dos tratamentos. “Há crianças a morrer prematuramente porque tiveram de interromper o tratamento de cancros”, denuncia Diana D’Agostino. Já a jornalista Maria Fernanda Rodriguez conseguiu enganar a segurança e recorrer a uma câmara oculta para perceber o que se passava dentro de vários hospitais de Caracas. O que encontrou, em muitos casos, aproximava-se quase de um cenário de guerra. “A maioria encontrava-se num estado grave de deterioração. Não existiam materiais médicos, não havia gazes ou seringas, muitas vezes as pessoas têm elas próprias de tentar comprar os materiais com que depois as tratam ou operam. Em alguns casos não havia luz ou água. Só há uma palavra para isto: é abandono.”
Além de “abandono”, Feliciano Reyna junta ainda outra palavra para o que está a acontecer neste momento ao sector da saúde: “corrupção”. “O estado das infraestruturas hospitalares hoje em dia na Venezuela é inaceitável”, afirma o responsável pela organização não governamental “Ação Solidária”. “Há alguns anos, o governo chavista anunciou um grande projeto de remodelação dos hospitais, mais de 60 em todo o país. Mas isso foi um foco de corrupção imenso, um poço sem fundo. As remodelações nunca foram feitas e anos depois ainda se viam os avisos afixados nas paredes com as obras que iriam ser feitas mas que nunca chegaram a acontecer. Houve gente que pôs muito dinheiro ao bolso.”
A juntar à falta de meios e condições, os médicos ainda têm de lidar com o problema grave da violência e insegurança, que grassa nas ruas e não pára à porta dos hospitais. “Por vezes chega um elemento de um grupo criminoso que foi baleado num confronto. Os familiares e amigos irrompem pelo hospital armados e ameaçam os médicos. Dizem-lhes ‘se não lhe salvas a vida, mato-te’”, conta a jornalista Maria Fernanda Rodriguez.
“AQUI PODEM MATAR-TE SE NÃO TIVERES NADA NO BOLSO PARA DAR”
“Já não basta teres de esconder o telefone no soutien ou o dinheiro nos sapatos, ainda tens de te preocupar com o teu cabelo”, desabafa Maria Fernanda. O fenómeno começou em Macaraíbo, capital do estado de Zulia, mas já começa a chegar a Caracas. A jornalista conta, na primeira pessoa, a história que viveu há dias. “Ia no autocarro, sentada à janela, e atrás de mim estavam um homem e uma mulher. De repente fiquei com calor e apanhei o cabelo. Em seguida ouvi-os dizer ‘olha que belo e comprido aquele cabelo’. Tu ouves isto e começas a relacionar as coisas mas pensas que não pode ser aquilo que tu estás a pensar... Até que a mulher disse ‘saca da arma’. Só tive tempo de saltar da camioneta e fugir dali.”
São conhecidas como “piranhas” e são mulheres que roubam cabelo para depois vender. “Quando até já nem o teu cabelo está em segurança, o que é que isso diz de um país?” O medo e a insegurança são bem visíveis no dia a dia da cidade. Não há praticamente um carro no intrincado trânsito de Caracas que não tenha os vidros fumados. Depois das sete da tarde, as pessoas já começam a recolher a casa. Evita-se falar ao telefone quando se anda na rua. O aumento da violência tem sido de tal ordem que, no ano passado, Caracas foi considerada a cidade mais violenta do mundo, com a maior taxa de homicídios por cada 100 mil habitantes.
Depois há o fenómeno dos “raptos-expresso”, que duram algumas horas, ao fim das quais as pessoas são libertadas mediante o pagamento de um resgate. Uma realidade que não é nova, mas que tem vindo a aumentar com a crise e que afeta muitas vezes a comunidade portuguesa, como revela o presidente do Centro Português de Caracas. Gil Andrade explicou inclusivamente ao Expresso porque é que em muitas ocasiões é preferível pagar o resgate aos grupos armados do que recorrer às intervenção das autoridades. A atual situação de insegurança está a preocupar a vasta comunidade de portugueses e lusodescendentes que vive no país, com muitos a pensarem já em ir embora.
A resposta do governo à insegurança crescente passa por reforçar a ação das OLP (Operações de Libertação do Povo), lançadas no ano passado e que implicam a ação conjunta de elementos de várias forças de segurança e militares. A atuação destas forças tem sido, no entanto, alvo de várias acusações de violações dos direitos humanos, detenções e execuções arbitrárias. No início de agosto, na cerimónia que assinalou com pompa e circunstância o 79º aniversário da Guarda Nacional Bolivariana, em Caracas, Maduro anunciou o relançamento do programa das OLP com um intensificar das operações até ao final deste ano.
Mas a estratégia governamental para combater a insegurança é criticada por muitos, sobretudo no que diz respeito precisamente à ação das milícias armadas. A jornalista Maria Fernanda Rodriguez dá o exemplo do que se passa na Cota 905, um dos bairros mais perigosos de Caracas e onde tiveram início as primeiras OLP. “Nesse bairro usavam-se granadas. Como é que esses malandros têm acesso a granadas? Como é que explicas que material de guerra chegue a um bairro comum? Apesar de tantas denúncias de repressões feitas pelas OLP, eles continuam a meter-se nas casas, torturam pessoas que podem ou não ser bandidos. Mas onde está a investigação, onde está o expediente aberto?”
A entrada da casa faz-se por uma porta com um gradeamento branco. Na parede do lado direito, Chávez aparece retratado com a sua camisa vermelha a andar numa bicicleta. Na do lado esquerdo pontifica um mural do rosto do comandante em grande plano com a mão a segurar o queixo, pensativo. Raiza tem agora 58 anos e aquela é a casa de toda uma vida. “Nasci aqui. A minha mãe teve os seus filhos aqui, eu tive as minhas filhas aqui, os meus dois netos nasceram aqui. Toda a vida estive aqui.” As pinturas é que não têm assim tantos anos: foram feitas poucos dias antes do 28 de julho, o dia em que Chávez faria anos se ainda fosse vivo.
“Sou chavista, claro que sim. Ele faz muita falta ao povo, deu-nos muitas coisas boas. Mas continuamos a viver a revolução e algum dia veremos a luz. Temos de aguentar estas pressões.” A casa de Raiza fica na rua que dá acesso ao Quartel da Montanha, também conhecido como “4F”, numa referência ao 4 de fevereiro de 1992, data em que Chávez comandou, a partir daquele local, um golpe de estado falhado. Raiza lembra-se bem desse dia e da agitação dos soldados de um lado para o outro.
Nos dias que correm, o quartel é local de peregrinação para muitos venezuelanos. É lá que está o corpo de Hugo Chávez, depois de ter morrido a 5 de março de 2013, vítima de um cancro. É lá, junto ao túmulo de Chávez, que o presidente Nicolás Maduro conduz, por vezes, algumas reuniões políticas. Ou aonde vai simplesmente para ponderar sobre as suas ações. “Por vezes vou lá durante a noite e, na maior parte das vezes, acabo por dormir lá”, chegou a afirmar um dia. Todos os dias, às 16h25, uma salva de canhão recorda a hora exata da morte de Chavez.
Apontado por muitos como um líder fraco e pouco carismático, Nicolás Maduro procura desde há três anos capitalizar ao máximo a imagem de sucessor escolhido pelo próprio “pai da revolução bolivariana”, e fiel depositário do seu legado. Mas muitos acreditam que nem a aura de Chávez poderá salvar agora o atual presidente. O processo para a convocação de um referendo que decida a continuidade de Maduro no cargo está em curso, mas a oposição acusa o regime de adiar ao máximo a consulta, instrumentalizando a Comissão Nacional Eleitoral (CNE). A CNE agendou finalmente para o final de outubro a recolha das assinaturas necessárias para levar o referendo adiante (20% do total do universo eleitoral), mas os prazos para que se realize este ano são já apertados. As sondagens mostram que Maduro perderá, mas se a consulta se realizar depois de 8 de janeiro, a Constituição determina que não se realizem novas eleições e o vice-presidente, Aristóbulo Istúriz, termine o mandato até 2019. Por outras palavras, o “chavismo” continuaria bem vivo no poder. Curiosamente, nas cerimónias oficiais, Nicolás Maduro é sempre referido como o “presidente constitucional”, uma referência não inocente que pretende sublinhar a legitimidade democrática de ter sido eleito.
O chamado “referendo revogatório” é encarado por muitos como uma espécie de válvula de escape, num país que é como uma panela de pressão prestes a rebentar a qualquer momento. “É a única solução democrática para canalizar o protesto e descontentamento da sociedade e sair desta crise de forma pacífica. Se não acontecer, o país pode entrar numa época de ingovernabilidade total e explosão social nas ruas”, vaticina o deputado da oposição José Guerra.
Muitos não duvidam que há uma estratégia deliberada por parte do chamado “oficialismo” para atrasar o referendo. “O referendo revogatório de 2004 (ao qual Hugo Chávez acabou por sobreviver) fez-se em 4 meses. Este também podia ter sido feito no mesmo tempo”, considera Carlos Correa, diretor da organização “Espacio Publico”. “Se o referendo acontecesse este ano existiriam eleições e toda esta gente teria de sair. Mas eles estão agarrados ao poder. E têm medo de sair porque poderão correr o risco de enfrentar várias acusações, corrupção, narcotráfico, violação de direitos humanos. Por isso fazem tudo para que Maduro permaneça no poder o mais tempo possível, porque é uma forma de se resguardarem”, afirma, por sua vez, Melanio Escobar.
Depois, há o impasse político que resulta da guerra aberta e deliberada entre governo e Assembleia Nacional, controlada pela oposição desde dezembro. Um dos anúncios que passa com frequência na televisão pública classifica mesmo o parlamento como “um grupo de deputados delinquentes”. E Maduro chegou até a ameaçar cortar o financiamento à Assembleia. “Nós não nos vamos atemorizar. Se for preciso não ganhamos salário, mas a Assembleia vai continuar a funcionar como até agora”, garante o deputado da oposição José Guerra. “O governo quer destruir a Assembleia porque este é o único poder independente na Venezuela. Todos os outros - Comissão Nacional Eleitoral, Supremo Tribunal de Justiça - estão controlados por Maduro. Este ano, quase todas as leis aprovadas pelos deputados foram vetadas pelo Tribunal.”
Outro problema prende-se com a progressiva militarização do regime e a ascensão dos militares a altos cargos do governo. O discurso oficial chavista resguarda-se sempre na importância para o país do que classifica como uma união “cívico-militar”, um conceito central para o “chavismo”. Chávez começou a dar cada vez mais poderes aos militares e Nicolás Maduro prosseguiu essa estratégia, com os principais cargos ministeriais a serem ocupados por membros do exército. “A crise política leva a uma deriva não apenas autoritária mas também militarista”, sublinha Feliciano Reyna, da organização “Ação Solidária”. “E isso é preocupante para a possibilidade que a sociedade tem de buscar entendimentos para sair desta situação crítica. Neste momento, diria que estamos mesmo no pior dos mundos - numa espécie de tempestade perfeita entre o político, o social e o económico.”
É uma espécie de Netflix mas adaptado à realidade venezuelana: chama-se “Vivoplay” e é nessa plataforma que Melanio Escobar apresenta diariamente um programa chamado “Noti Tweets”, com muito sarcasmo e humor à mistura. A ideia é pegar no que mais se diz e comenta pelas redes sociais para depois falar sobre a situação crítica que o país atravessa. “O facto de a internet ter ganho tanta importância para informar as pessoas na Venezuela está diretamente relacionado com a censura exercida pelo Estado sobre os meios de comunicação”, considera Melanio.
Carlos Correa reforça essa ideia. O diretor da “Espacio Publico” - organização criada em 2007 precisamente para monitorizar as questões relativas à liberdade de expressão na Venezuela e dar apoio jurídico a quem necessite - afirma que, nos anos recentes, tem existido uma espécie de “afunilamento dos espaços de liberdade”. “Estimamos que, neste momento, no que diz respeito ao volume de jornais e de informação, esteja a circular apenas 20% do que tínhamos há três anos.” Muitos jornais ou fecharam ou passaram para o controlo do Estado. E aqui há um fator decisivo que entra em conta. “O governo detém o monopólio do papel. E define a quem dá papel e em que termos…”
Isso contribuiu bastante para o crescimento do uso das redes sociais.“Os jornais em papel vão fechando mas abrem-se novas janelas digitais”, afirma a jornalista Maria Fernanda Rodriguez. Um exemplo disso é o sucesso do programa de Melanio.
Mas a potencialidade das redes sociais e da internet está também a ser usada para fins práticos, como ajudar as pessoas a conseguir as coisas que não encontram no dia a dia. A “Redes Ayuda”, organização à qual pertence Melanio Escobar, desenvolveu uma aplicação que usa um sistema de geolocalização através do qual as pessoas podem ligar-se entre elas num raio de proximidade, com o objetivo de trocar medicamentos, alimentos ou outros bens de que tenham necessidade.
Não resolve todos os problemas, mas é com pequenos passos e a persistência de pessoas como Melanio que as coisas podem começar a mudar. “Não podemos permitir que as pessoas que já nos roubaram o passado e que nos estão a roubar o presente ainda nos roubem o futuro que possamos ter.”
Em abril de 2013, em plena campanha presidencial para escolher o sucessor de Hugo Chávez, o ex-presidente do Brasil Lula da Silva fez um vídeo de apoio em que afirmava que Maduro como presidente seria a Venezuela que Chávez sempre sonhou. Maduro venceu à justa, com 50,66% dos votos, numas eleições muito contestadas na altura pelo candidato da oposição, Henrique Capriles. Maduro, o homem que o próprio Chávez, na sua última aparição pública, designou como seu sucessor acabaria mesmo por tomar conta dos destinos do país. Para muitos é um líder com os dias contados, mas só os venezuelanos poderão decidir.
No âmbito da realização desta reportagem, o Expresso pediu entrevistas ao governo venezuelano, através do Ministério do Poder Popular para a Informação e Comunicação, e ainda a deputados do “Gran Polo Partidário”, a coligação de partidos de esquerda que apoia Nicolás Maduro. Tanto durante o tempo de reportagem em Caracas como até ao fecho deste edição, ninguém se mostrou disponível (reportagem dos jornalistas do Expresso, JOÃO SANTOS DUARTE E CARLOS PAES. Os videos são publicados neste blog separadamente)

Sem comentários: