segunda-feira, setembro 17, 2018

O vinho de mesa madeirense que nasceu da casta amaldiçoada

Três vinhos irmãos, nascidos da mesma colheita e da mesma casta, foram batizados em homenagem à Madeira. Os Ilha são criação da produtora autodidata Diana Silva e fruto de uma uva desamada. Diana Silva está sentada num muro, de costas para o mar ligeiramente revolto que contorna o hotel Estalagem do Mar, na Madeira. Da boca sai-lhe um charuto meio fumado, já apagado. O esforço para acendê-lo é visível. O vento não está favorável e o céu ameaça complicar a operação. Mas Diana não é pessoa de desistir. Aos 33 anos acumula títulos não oficiais que resultam de uma ambição já apelidada de “louca”: não só é a produtora de vinhos mais nova da ilha, como a única a fazer uma trilogia com uma só casta tinta — amada por poucos, desamada por muitos. Um vinho tinto, outro branco e um rosé. Todos vindos da aparentemente grandiosa colheita de 2017. Todos feitos com um único tipo de uva, tinta negra, a casta de maior cultivo da Madeira que, à semelhança da baga na Bairrada, nem sempre gozou de boa fama.
Os vinhos de Diana Silva chamam-se Ilha e são uma homenagem à terra que a viu nascer. O percurso de Diana não é o habitual. Para pagar o curso de Comunicação e Turismo em Lisboa precisou de trabalhar ao mesmo tempo que acumulava estágios obrigatórios, a mando da Escola de Hotelaria do Estoril. O primeiro acontece junto dos vinhos Madeira da Blandy’s, onde se dá o primeiro contacto oficial com o vinho. A ideia era só servir de guia, mas Diana fez muito mais do que isso. O bichinho que aí nasceu criou raízes um ano depois, quando trabalhou numa loja no Palácio da Bolsa, no Porto, e participou em diversas provas de vinho sob o entusiasmo de Nuno Vaz Pires, diretor da atual Revista de Vinhos. “Ele foi das primeiras pessoas a incutir-me a prova. Ele achava que eu tinha uma certa aptidão de olfato”, recorda, ainda no amplo terraço do hotel. A agitação do mar serve de banda sonora à entrevista, já Diana Silva relata a fase da vida em que trabalhou como escanção, cargo para o qual foi convidada sem ter qualquer formação — atualmente, está a terminar uma pós-graduação em enologia.


O inexplicável jeito para a prova de vinhos abriu-lhe as portas do restaurante Manifesto, de Luís Baena e, mais tarde, do Faz Gostos. Seguiu-se a área comercial. Primeiro trabalhou os vinhos do produtor Rui Roboredo Madeira e depois os de Paulo Laureano. Com ambos ganhou uma vasta rede de contactos em Portugal e fora do país. Não será por acaso que as mais de 11.000 garrafas dos três Ilhas foram quase todas distribuídas em apenas um mês (estão à venda, a título de exemplo, na Garrafeira Nacional, Garrafeira Napoleão e garrafeira Tio Pepe, mas também nas cartas do Belcanto e do 100 Maneiras). Diana nem consegue acreditar.
Provou e deu a provar até chegar a hora de produzir o próprio vinho, com inspiração na ilha da Madeira. A produtora ainda se lembra do dia em que chegou a casa e o marido (que também é parceiro de negócio) falou em criar uma referência à sua imagem. “Se é para fazer um projeto à minha maneira, então, vai ser na Madeira. Não vou fazer mais um Douro, mais um Alentejo ou mais um Lisboa. Quero fazer diferente e pegar na casta que eu gosto”, foi a resposta. Três anos depois os vinhos de mesa madeirense DOP (Denominação de Origem Protegida) são oficialmente apresentados à imprensa.
A prima do Pinot Noir
Vinhos de mesa e Madeira não são uma associação comum, apesar da sua popularidade estar a crescer — nesta área, são os famosos fortificados que ainda dominam o mercado e as vontades. A maior parte dos vinhos de mesa, garantem várias pessoas com quem o Observador falou quando na Madeira, são escoados na ilha e poucos chegam ao continente — talvez a exceção mais representativa seja o Terras do Avô, com a consultoria do também enólogo Paulo Laureano. A isto juntamos a fama da tinta negra, a casta que Diana diz ser uma prima do Pinot Noir: “Ela é Pinot em quase tudo, no nariz tem a característica da cereja, é delicada na boca, tem boa acidez e frescura. Mas não quero vendê-la como Pinot”. Diana não tem uvas próprias. O acesso à camaleónica tinta negra — plantada na Madeira no século XVIII e que nada tem que ver com a algarvia negra mole — acontece através de parcerias feitas com alguns viticultores de São Vicente, no norte da ilha. Um deles é Samuel Freitas, cuja vinha está localizada no sopé de uma serra, envolvida por montanhas cujo topo fica escondido pela neblina em dias cerrados. Nesta zona estão algumas das vinhas em latada mais altas de São Vicente. Das mais velhas também, com 30 a 40 anos em cima. Tendencialmente, e comparando com outras regiões da ilha, as uvas de tinta negra são mais pequenas e carregadas de açúcar. Ao todo, Diana trabalha com pouco mais de um hectare de vinha (cerca de 12.000 metros, como se costuma dizer por aqui) distribuídos por várias parcelas — uma dimensão significativa na Madeira. O pouco interesse na casta é fácil de explicar. A tinta negra sempre foi associada a quantidade em detrimento de qualidade, sendo sobretudo usada na produção de vinho Madeira devido às menores maturações e ao facto de não exigir tantos cuidados na vinha. “Infelizmente, a maior parte das pessoas ainda acredita que álcool é sinónimo de qualidade e a tinta negra nunca, mas nunca, vai ter maturações elevadas na Madeira. Não conseguimos que ela ultrapasse os 11,5% de álcool em vinha. Só utilizando mosto concentrado, retificado, natural, é que ela chega aos 12%. As pessoas assumem que um vinho para ser bom tem de ter muito álcool porque tem mais açúcar, é mais fácil gostar dele”, explica. Curiosamente, os vinhos que faz não se destinam ao mercado tradicional. O rosé é seco e gastronómico e o branco é o primeiro blanc de noirs (branco produzido apenas com uvas tintas) da Madeira. “Foi quando fiz o blanc de noirs que começaram a chamar-me maluca. Mas acho que o vinho consegue mostrar a versatilidade da casta.” O tinto — que apresenta uma cor aberta, mostra-se elegante e tem uma acidez interessante — “é o que mais prazer me dá a beber, mas é também o mais difícil. Ou amas ou odeias”, atesta, lembrando que deu muito trabalho de vinificação.
Dores de parto
Nada no processo de fazer a trilogia de vinhos foi fácil. A expressão que mais vezes sai da boca de Diana Silva é “dores de parto”. A produtora fala em rivalidade em vez de parceria e conta como, a duas semanas da vindima, um viticultor vendeu, à revelia, as uvas a outro produtor. “Ninguém me conhecia e eu investi muito naquele produtor. Estive com ele em fevereiro e em março e, no final de agosto, ele vendeu a uvas a outro produtor.” Em 2017, Diana quase teve de pedir “por amor de Deus” pelas uvas que todo estavam relutantes em dar. “O ano passado foi dos melhores anos de tinta negra na Madeira e, mesmo assim, meu Deus… Paguei mais caro por uvas que não eram as melhores”, recorda com algum desgosto, admitindo que há uma desconfiança generalizada tendo em conta um novo projeto. Se não tem uvas, muito pouco tem adega. O vinho de mesa de Diana Silva é feito, à semelhança de todos os vinhos de mesa daquela região, na Adega Cooperativa de São Vicente, construída com apoios do Governo regional em 1999 para garantir a subsistência do sector. Se no início houve um enfoque maior no trabalho com castas internacionais, hoje essa é uma tendência que perde fulgor a cada dia que passa. Diana é uma dos cerca de 10 clientes da adega, que tem como chefe de enologia João Pedro. A adega dá a possibilidade aos clientes de escolherem enólogos consultores. “No caso da Diana, ela quis apostar no maluquinho que está cá dentro”, diz-nos numa visita guiada pelas infraestruturas que, em breve, vão ser transferidas para um parque industrial. “Este é o último ano à beira-mar. Aqui há muitos problemas de oxidação.” 
Diana jura que nunca vai fazer vinhos que não sejam monocastas. A ideia de misturar uvas na Madeira nem uma ideia é. E apesar de um ano particularmente difícil para os viticultores (nas ilhas e no continente), quer chegar a 2019 com um Ilha verdelho — por esta altura já deve saber se o nome que escolheu para o vinho foi ou não aprovado. Até lá, é bem provável que continue a ser apelidada de “maluca”, um adjetivo que encara enquanto elogio, não fosse ela uma “mãe” babada pelos vinhos elegantes, salinos e de baixo teor alcoólico que criou (Observador, texto da jornalista Ana Cristina Marques, com a devida vénia)

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