Uma série de
estudos voltou a trazer a discussão para a ribalta: devemos mesmo perder o sono
por causa da dívida pública? A mais recente investigação indicia que algumas
das histórias de terror que se contam sobre o endividamento do Estado podem ser
exageradas.
Se calhar, o
artigo tem de começar com um aviso: este texto não é sobre Portugal. O Estado
português tem uma dívida demasiado elevada – uma das maiores do mundo -, que
terá de alguma forma de diminuir (e já o começou a fazer). Feita a ressalva, há
um debate interessante a decorrer no mundo académico sobre os limites ao
endividamento. Os últimos estudos concluem que talvez devamos temperar o nosso
medo da dívida pública.
Olivier Blanchard
foi o último a juntar a voz ao debate. A sua apresentação na American Economic
Association, feita há poucos dias, criou burburinho no meio económico. O título
não é particularmente excitante – “Dívida pública e taxas de juro baixas” -,
mas a conclusão do ex-economista-chefe do FMI é bastante provocadora. Numa
frase: a obsessão mundial com os níveis de dívida pública é manifestamente
exagerada.
“Mostro que a
situação atual nos EUA, onde se espera que taxas de juro seguras permaneçam
abaixo dos níveis de crescimento por muito tempo, é mais a norma histórica do
que a exceção. Se o futuro for como o passado, isso implica que a renovação de
dívida, emissão sem futuros aumentos de impostos, possa ser possível. De forma
abrupta, a dívida pública pode não ter custos orçamentais”, escreve Blanchard.
Ou seja, as
últimas décadas têm mostrado que a regra é o crescimento económico superar as
taxas de juro, uma tendência que deverá continuar a observar-se no futuro. Isso
significa que no médio-longo prazo, a dívida não implica um custo orçamental
para os Estados. Esta ideia pode dar um nó no cérebro de muitas pessoas,
principalmente tendo em conta a situação portuguesa. Mas não só a conclusão não
é uma apologia de um endividamento tão elevado como o português – que ronda os
125% -, como só funciona se não for acompanhada por sucessivos défices elevados
e se a despesa for produtiva.
Blanchard é um dos
economistas mais influentes do mundo e umas das mentes mais respeitadas na
academia, pelo que a apresentação despertou entusiasmo. Paul Krugman escreveu
que o estudo é mais uma prova de que “a obsessão com a dívida parece absurda
mesmo em pleno emprego” e que “se está a tornar cada vez mais duvidoso que haja
uma boa altura para fazer austeridade orçamental”.
Como já referimos
aqui, o que interessa para avaliar o nível de endividamento de um Estado não é
o valor nominal da dívida, mas a sua relação com os impostos que o Governo é
capaz de cobrar, isto é, com a dimensão da economia. Mesmo que a dívida
aumente, o crescimento e a inflação compensam esse movimento, diluindo o
endividamento público (mais uma vez, desde que os défices não sejam muito
grandes). Portanto, se as taxas de juro tendem a ser inferiores ao crescimento
do PIB, como nota Blanchard, a bola de neve tende a ir sempre derretendo, sem
criar uma espiral de endividamento.
O economista
francês é relativamente cauteloso nas conclusões, mas Krugman vai mais longe e
acrescenta que a nossa preocupação com a dívida está a levar-nos a adiar
necessários investimentos em infraestruturas. “Apesar de toda a conversa sobre
tomar conta das gerações futuras, os resmungões da dívida provavelmente
penalizaram, e não ajudaram, as nossas perspetivas futuras”, refere o Nobel da
Economia.
No mesmo NYT,
David Leonhardt alerta que “a ideia de que a dívida não interessa […] é
errada”. Porém, ainda que se assuma como alguém que se preocupa com os níveis
de endividamento público, considera “os argumentos de Blanchard persuasivos”.
“O erro que os EUA e a Europa têm cometido nos últimos anos não tem sido emitir
demasiada dívida. Tem sido emitir pouca – e esquecer o investimento em
educação, transportes, etc.”
No Washington
Post, Jared Bernstein sublinha que este debate tem sido marcado por “asserções,
preconceito e alarmismo”. E refere-se ao caso europeu, notando que “não
devíamos certamente reduzir [a dívida e o défice] quando eles são necessários
para apoiar economias enfraquecidas, como os ‘austeritários’ fizeram,
especialmente na Europa, mas também aqui [nos EUA], nos primeiros anos da
expansão”. “Se aprendermos as lições que retiro deste paper, podemos deixar de
cometer erros que têm sido terrivelmente penalizadores para o bem-estar de
milhões de pessoas”, acrescenta o antigo conselheiro económico do
vice-presidente Joe Biden.
Este debate não
arrancou agora, nem Blanchard é um cavaleiro solitário. Em abril de 2017, o FMI
incluiu no seu Fiscal Monitor uma caixa com o título “Podem os países suportar
níveis mais elevados de dívida?”. Nele, o Fundo admitia a possibilidade de
termos entrado numa era de juros baixos que pode durar décadas. “Parece-nos
provável que pelo menos algumas das descidas sejam, de facto, muito
persistentes, se não mesmo permanentes. Se o diferencial entre crescimento e
taxas de juro tiver caído 1 ponto percentual de forma estrutural, isso
significa que os limites de endividamento público podem aumentar 10-40 pontos
percentuais.
É uma conclusão
importante. As regras europeias, por exemplo, exigem que os Estados-membros
tenham uma dívida pública inferior a 60% do PIB. Se a investigação se revelar
correta, isso significa que este limiar talvez devesse ser mais elevado.
Mais recentemente,
o FMI voltou à carga. Um estudo assinado por Philip Barrett procura responder a
uma pergunta semelhante: a descida das taxas de juro desde a crise financeira
significa que os Governos se podem endividar mais do que se pensava? “A
resposta curta a essa pergunta é ‘sim, mas provavelmente apenas por alguns
pontos percentuais’”, escreve o autor.
A dívida não tem
limites?
Há até perspetivas
mais radicais. À esquerda, começa a ganhar força a ideia de que a dívida não
interessa para nada e não há limites para o dinheiro que o Governo pode pedir
sem que sofra qualquer consequência negativa por isso. Porquê? Porque o Estado
pode sempre imprimir dinheiro (a teoria faz mais sentido melhor nos EUA, do que
na Zona Euro, onde os países não têm moeda própria, nem há união orçamental).
Tem ficado conhecido como “modern monetary theory” ou MMT.
Noah Smith, da
Bloomberg, explica:
“Imaginem que o
Governo decide acumular quantidades infinitas de dívidas. Que coisas más podem
acontecer? O serviço da dívida aumenta. Mas em vez de aumentar os impostos para
pagar os juros, o Governo pode simplesmente pedir mais emprestado para cobrir
esses pagamentos de juros. A Reserva Federal poderia também baixar as taxas de
juros para zero, eliminando os custos dos juros. Isto é basicamente o que
aconteceu no Japão.”
A cada obstáculo
que vai surgindo, a resposta é sempre a mesma: o Governo pode ir pagando por
tudo o que quer, porque tem a capacidade para estar sempre a imprimir dinheiro.
No entanto, há uma limitação de que provavelmente já ouviu falar: quando já não
houver recursos, bens e serviços para comprar ou pessoas para empregar, o que
acontece? Ninguém tem a certeza no atual ambiente, mas a ideia com maior aceitação
entre os economistas é que a inflação começaria a aumentar, arriscando-se a
entrar num estado de hiperinflação, com subidas galopantes dos preços. Para
perceber o medo desta consequência, basta pensar no que está a acontecer na
Venezuela ou no exemplo mais famoso: a Alemanha dos anos 30.
“Uma aceitação
total do MMT representaria assim um risco para o futuro económico dos EUA, com
base na ideia de que a hiperinflação não pode ocorrer aqui. As experiências
recentes tornam um desastre desses pouco provável, mas a verdade é que ninguém
sabe quão provável seria se o MMT passasse da teoria à realidade”, refere o
mesmo artigo.
Devemos estar
longe de confirmar se estas ideias – mesmo as menos radicais – são válidas (ou
aceites pelos responsáveis políticos). Mas o debate sobre a dívida pública não
deverá voltar para trás (Visão/Exame)
Sem comentários:
Enviar um comentário