Aceitei o convite do
Professor Joaquim Sarmento para apresentar o seu livro “A Reforma das Finanças
Públicas em Portugal” por duas razões. Primeira, porque foi Assessor para os
Assuntos Fiscais e Políticas Públicas da minha Casa Civil e muito me ajudou no
exercício das funções de Presidente da República. Segunda, porque é um dos
académicos que melhor conhece o estado das finanças públicas portuguesas e do
processo orçamental e sobre ele tem escrito abundantemente. Pode-se discordar
de algumas das suas propostas, por razões ideológicas, mas há que reconhecer a
seriedade e o rigor técnico das suas análises.
O tema do livro do
Professor Joaquim Sarmento pertence ao domínio de um dos grandes pilares da
política económica, a política orçamental. Trata-se de um tema da maior
atualidade e relevância para o País. A política orçamental esteve no centro do
Programa de Assistência Económica e Financeira que, sob a vigilância da troika,
o Governo português executou o período de 2011-14, de modo a enfrentar a
situação de emergência financeira a que o País fora conduzido pelo Governo do Partido
Socialista. Por outro lado, as finanças públicas estão sujeitas a uma forte
pressão decorrente do envelhecimento populacional e a dúvida quanto à sustentabilidade
das contas públicas portuguesas é um tópico recorrente dos relatórios das
instituições financeiras internacionais.
Segundo o autor, e bem,
sem a reforma das finanças públicas não é possível realizar eficazmente as importantes
funções que cabem à política orçamental: a provisão de bens e serviços públicos
de qualidade, a eficiência na utilização dos recursos disponíveis, a redução
das assimetrias na distribuição do rendimento e da riqueza que resultam das
leis do mercado e da herança e a estabilização macroeconómica. Joaquim Sarmento
estabelece como condição necessária e prioritária a consolidação das finanças
públicas e a redução da dívida pública e considera fundamental alcançar um
consenso político sobre estes dois objetivos, de modo a que, de vez, o saldo do
orçamento deixe de ser um tema dominante do debate sobre a política orçamental
do País. No curto prazo, esse consenso político entre as principais forças partidárias
encontra-se afastado, dado o elevado nível de crispação reinante: crispação
social, palpável nas greves e no descontentamento de tantos sectores, mas
também crispação política na Assembleia da República. Espera-se que o nível de
crispação se esbata após o ato eleitoral. Tendo presente as restrições à
política orçamental que resultam da participação de Portugal na Zona Euro, o
autor adota como objetivo de médio prazo da consolidação orçamental um
superavite estrutural de 0,25% PIB, tal como é sugerido pela Comissão Europeia.
Para o rácio da dívida
pública em relação ao PIB, Joaquim Sarmento adota o objetivo de 90%, a alcançar
tão rapidamente quanto possível, até 2030 no máximo. Estes objetivos deixariam
espaço para que o Orçamento do Estado pudesse exercer as funções sociais e a
função de estabilização da produção e do emprego em caso de um choque externo,
para além de favorecerem a eficiência dos serviços públicos.
Aproveito para lembrar,
como ensinam os livros, que o saldo das contas públicas, tal como o saldo das
contas externas, não é um objetivo de política económica desejável em si
próprio: um certo valor do saldo, ao contrário do emprego, do crescimento
económico ou da justiça na distribuição do rendimento, não acrescenta
diretamente ao bem estar económico e social. O saldo das contas públicas é,
sim, uma restrição que impõe limites à extensão em que os verdadeiros objetivos
de política económica podem ser prosseguidos, restrição essa que, por erros do
Governo, pode tornar-se tão forte ao ponto do poder político ser obrigado a
erguer a correção do défice à categoria de objetivo prioritário, como já se
verificou várias vezes em Portugal, a última das quais entre 2010 e 2014. Passados
cinco anos sobre o encerramento do Programa de Ajustamento subscrito com as
instituições internacionais, não faz qualquer sentido que o saldo das contas
públicas continue a ser um tema dominante da política orçamental portuguesa.
Trata-se apenas de esconder o que é realmente importante. Surpreende que os
analistas ainda não se tenham apercebido disso. Compreende-se assim que o autor
do livro queira, de vez, colocar o saldo do orçamento no seu devido lugar.
Como bem explica o
Professor Joaquim Sarmento, um consenso político sobre um orçamento estrutural
equilibrado não implica uma decisão sobre a dimensão e as funções do Estado,
escolha que é eminentemente política, com um forte pendor ideológico. Já o
modelo de organização e gestão do sector público é uma questão eminentemente
técnica. Há, no entanto, limites que a intervenção do Estado e a grandeza da despesa
pública não devem ultrapassar, quaisquer que sejam as preferências ideológicas.
São eles, desde logo, a capacidade da economia para gerar receitas de impostos
para financiar a despesa pública, assim como o nível da carga fiscal dos nossos
concorrentes na captação de investimento (os países do Sul da Europa e do Leste
europeu). Esta é uma área em que Portugal está mal posicionado, com
consequências negativas no crescimento potencial da economia. Resolvida a
questão do limite da despesa pública, o autor aborda três outras questões
decisivas da reforma do Estado: primeiro, onde gastar?
i.e., em que áreas deve
o Estado realizar as despesas; segundo, como gastar?
i.e., dotar a
Administração Pública de uma gestão financeira moderna que garanta a legalidade
da despesa e a sua eficiência e eficácia; e, finalmente, quem gasta?
i.e., quem são os
responsáveis pela produção dos bens e serviços providos pelo Estado: a
administração central, regional, local ou o sector privado? Joaquim Sarmento
dedica um extenso capítulo do seu livro à reforma da Gestão Financeira do
Estado, visando o aumento da competência e da transparência na gestão dos
dinheiros públicos, a redução dos desperdícios e das redundâncias e a melhoria
do nível de responsabilização dos agentes da Administração Pública, sem, no
entanto, pôr em causa os níveis de proteção social.
O autor apresenta mesmo
uma longa listagem de medidas concretas para fazer a Reforma da Administração
Financeira do Estado para o Século XXI. Destaco duas dessas medidas que já
foram por mim referidas noutras ocasiões. Primeira, a resolução do problema da
remuneração dos dirigentes da Administração Pública, muito inferiores às do
sector privado, verificando se o inverso nas funções menos qualificadas, onde o
sector público remunera acima do privado. O atual leque salarial da função
pública – que no passado se apelidava de “albanês” –, é bem o reflexo da
hipocrisia e da cobardia de boa parte da classe política portuguesa. Segunda, o
reforço da transparência na nomeação de pessoas para os lugares de direção da
Administração Pública.
É fundamental que a Comissão
de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP) volte a ser
respeitada como entidade independente e combater a tentação do poder político
de a controlar. Como se tem vindo a verificar, a prática de jobs for the boys é
muito negativa para o País e para o bem-estar dos portugueses. No livro que
escrevi em 2017 classifiquei as situações deste tipo como indecorosas. Mas nem
tudo vai mal no nosso País em matéria de gestão financeira do Estado. É
geralmente reconhecido que o Instituto de Gestão do Crédito Público tem vindo a
fazer um bom trabalho na gestão da dívida pública. Ao longo do seu livro
Joaquim Sarmento procura desmontar vários equívocos sobre a política
orçamental. Um deles é o de que um Ministro das Finanças que privilegie a
consolidação estrutural das contas públicas está contra o crescimento
económico. Escreve ele, e bem, que “não há nada de mais errado”.
Pelo contrário, ao
fazê-lo o Ministro “está a contribuir para que Portugal tenha um crescimento
económico sustentável”. Nesse sentido, o autor enumera um conjunto de políticas
amigas da competitividade e do crescimento que podem ser prosseguidas pelo
Ministro das Finanças. Eu, que desempenhei essas funções no Governo de Sá
Carneiro, não posso estar mais de acordo. Um domínio da política orçamental que
está fora do objeto do livro do Professor Joaquim Sarmento e que também
necessita de uma reforma é o do sistema fiscal português. As alterações que lhe
têm sido introduzidas à margem de qualquer estudo sério sobre os seus efeitos
fizeram do sistema fiscal um conjunto caótico de impostos sem a mínima
coerência, confuso, inequitativo e não competitivo.
A equidade, um dos
princípios fundamentais em que deve assentar um sistema fiscal, foi substituída,
em boa parte, pela arbitrariedade. Eu tenho evitado comentar em público as
medidas económicas e financeiras do atual Governo. Mas, para ilustrar a
iniquidade das opções que têm sido feitas em matéria orçamental, vou recordar
um caso que já deixei escrito no meu livro “Quinta-Feira e Outros Dias”, que
publiquei em Outubro passado. Portanto, o que vou dizer já é do conhecimento
público, não é nada novo. Refiro-me à opção do Governo de reduzir a taxa do IVA
para os serviços de restauração de 23% para 13%, o que implica uma perda anual
de receita de cerca de 400-500 milhões de euros. Trata-se de uma medida
profundamente errada e profundamente injusta. Os beneficiários são, acima de
tudo, os produtores e os consumidores de serviços de restauração que, na sua
maioria, são detentores de rendimentos acima da média. Mas para ter uma ideia
correta da dimensão da injustiça que está associada a esta medida é necessário
ter em conta a chamada “restrição orçamental”, algo que todos os políticos que
lidam com questões orçamentais deviam ter sempre presente, o que, infelizmente,
não se tem vindo a verificar.
A “restrição
orçamental” diz-nos que, em cada período, uma variação da despesa pública é
igual à soma da variação da receita mais a variação do endividamento público.
Trata-se de uma identidade, i.e., verifica-se sempre. A ignorância (ou
ocultação deliberada) da “restrição orçamental” por parte de alguns políticos
portugueses é quase escandalosa. Na conjuntura que o País tem vindo a
atravessar, e como escrevi no meu livro, não posso deixar de ligar a perda de
receita com a descida do IVA da restauração à acentuada degradação da qualidade
do Serviço Nacional de Saúde. Isto é, o benefício concedido ao sector da
restauração está a ser pago pelos utentes do Serviço Nacional de Saúde sob a
forma de degradação da qualidade dos serviços que lhes são prestados, utentes
que não dispõem de rendimentos para recorrer aos hospitais privados: longas
listas de espera nas cirurgias, nas consultas, nos exames de diagnóstico.
A esta profunda
injustiça está também associada uma outra opção do Governo errada com
incidência na área da saúde, a que faço igualmente referência no meu livro de
memórias: a reversão do horário de trabalho semanal da função pública de 40
para 35 horas, discriminando negativamente os trabalhadores do sector privado. É
assim claro que a degradação da qualidade dos serviços públicos de saúde se
deve acima de tudo a decisões políticas erradas, tomadas, provavelmente, com
propósitos eleitoralistas. Estas medidas profundamente injustas, atingindo
acima de tudo cidadãos de baixos rendimentos, foram aprovadas não só pelo
Partido Socialista mas também pelo Partido Comunista e pelo Bloco de Esquerda,
o que ilustra bem a hipocrisia de partidos que procuram iludir os portugueses com
falsos discursos de defesa dos mais desfavorecidos da nossa sociedade. Por
estas e por muitas outras, só se deixa enganar quem quer ser enganado. A
afirmação feita pelo Governo – e reproduzida por boa parte da comunicação
social – de que não há dinheiro para tudo não faz qualquer sentido. Só o faria,
se o Governo não tivesse dado uma resposta económica e socialmente errada à
questão tratada no livro de Joaquim Sarmento: “onde é que o Estado deve
gastar?”. Surpreende que a maioria dos analistas que se debruça sobre as
finanças do Estado ignore esta questão. O debate relevante não é sobre se há ou
não dinheiro para tudo, é sim sobre onde é que o Estado deve gastar. Se fosse
feita a reforma do Estado sugerida pelo autor, o montante de impostos cobrado
aos portugueses chegaria para o Estado fazer bem o que deve ser feito e talvez
ainda sobrasse dinheiro. Opções erradas na despesa pública em sentido lato e
nos impostos são algumas das razões que explicam que Portugal continue a ser
ultrapassado pelos países do centro e leste europeu em termos de
desenvolvimento; que a Irlanda, a Espanha e Chipre, que também foram sujeitos a
Programas de Ajustamento, tenham vindo a alcançar taxas de crescimento muito
superiores a Portugal; e que até a Grécia, que foi objeto de três resgates
financeiros, registe agora previsões de crescimento para 2019 e 2020 bem
superiores ao nosso País. Porque é que Portugal, em termos de desenvolvimento,
está a caminho de cair para o lugar de lanterna vermelha do grupo de países da
Zona Euro? Porquê?
Esta é a questão chave
da economia portuguesa, a questão que devia dominar a atenção da nossa classe
política. Contudo, alguns procuram escondê-la. O livro do Professor Joaquim
Sarmento é um importante contributo para a indispensável reforma das Finanças
Públicas em Portugal. Se houvesse racionalidade, bom senso e espírito de
compromisso na política portuguesa e se o sentido do interesse nacional dos
políticos ultrapassasse os ciclos eleitorais, a reforma das finanças públicas
seria um tema central de debate no início da próxima legislatura. Mas seria
igualmente importante que na nova legislatura fosse feita uma análise global e
séria da miríade de impostos que existem em Portugal, alguns disfarçados sob a
designação de taxas e derramas, e das alterações que o devaneio de políticos em
cada orçamento anual tem introduzido nos códigos, destruindo a sua lógica. É
urgente dotar o país de um sistema fiscal equitativo, simples, transparente,
competitivo e estável, substituindo a situação caótica e a falta de coerência
que caracteriza o atual sistema fiscal português. O País teria muito a ganhar
em termos de desenvolvimento económico, de justiça social e de reforço da sua
imagem externa. Felicito calorosamente o Professor Joaquim Sarmento pelo
esforço que tem desenvolvido para introduzir seriedade e rigor técnico no
debate sobre o estado das finanças públicas portuguesas. Obrigado" (foto da Lusa)
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