domingo, fevereiro 01, 2015

Cristiano, Mourinho e Figo: três queridos inimigos

"Baltazar, Gaspar e Melchior. Os três Reis Magos vêem uma estrela e arrepiam caminho. O objectivo é o menino Jesus. E levam--lhe três presentes: ouro, mirra e incenso. É costume oferecer-se ouro a um rei, incenso a um sacerdote e mirra a um profeta. Por isso, Baltazar, de raça negra, oferece mirra em representação de imortalidade. Belchior, de raça branca, oferece ouro e reconhece-lhe realeza. Gaspar, da raça amarela, oferece-lhe incenso e atribui-lhe divindade. Passam-se uns anos, viram-se uns século et voilà, habemus três Reis Magos em Portugal. Um leva golos em vez de ouro (Ronaldo), o outro troca a táctica pela mirra (Mourinho) e um terceiro quer transformar a burocracia em incenso (Figo). Os três da vida airada, isso sim. Cada um virado para o seu lado mas no fundo, no fundo, unidos no propósito de conquistar o mundo. À sua maneira. E cheio de interligações. Para começar, os três têm Bolas de Ouro FIFA no seu currículo. Elevam Portugal, como só eles sabem, a um nível só antes visto com Eusébio, nos anos 60. Os três também partilham o mesmo passado num determinado momento da vida: Real Madrid e Sporting. Neste último, Figo é até treinado por Mourinho, adjunto de Bobby Robson entre Julho de 1992 e Dezembro de 1994.
E Figo mais Ronaldo? Ahhh, aí já só mete a selecção nacional, entre 2003 (ano de estreia de Cristiano) e 2006 (ano do adeus de Luís). Pormenor delicioso: o primeiro golo de Ronaldo é de cabeça, assistido por Figo, vs. Grécia, no Dragão, na abertura do Euro-2004. Os dois chegam à final dessa prova, perdida com a Grécia, agora na Luz, e jogam ainda o Mundial-2006. Scolari perspectiva: "Figo é o maior que treinei mas Ronaldo vai ser um líder igual a ele."
FIGO + RONALDO = MIRRA
Dois líderes, dois egos. Figo e Ronaldo puxam constantemente a brasa à sua sardinha, com o primeiro a dar bicadas sempre que necessário. Um exemplo flagrante é o da ressaca do adeus ao Mundial-2010, aos pés da Espanha. Na zona mista, Ronaldo despacha os jornalistas com um "perguntem ao Queiroz". Figo vem a terreiro defender o professor. "Tenho os princípios do que é ser um capitão, mas cada um deve assumir as suas declarações e os actos que toma. Como capitão, actuei umas vezes em benefício do grupo e em prejuízo do meu. O capitão deve defender o grupo, defender os companheiros. Não me interessa o que o Cristiano Ronaldo faz, interessa-me sim a imagem da Selecção Nacional. Para mim, um capitão, independentemente do insucesso ou sucesso, deve sempre defender o grupo, independentemente de sair prejudicado em termos de imagem, e, acima de tudo, deve nos momentos difíceis dar a cara pelo grupo." Pumbaaaaa, vai buskar. Cinco anos depois, outro momento de Figo. "Messi e Ronaldo são jogadores que marcam a diferença por estarem acima dos demais. No meu tempo, tive a felicidade de jogar ao lado de grandes jogadores e de defrontar grandes jogadores, possivelmente melhores que Ronaldo e Messi." Possivelmente, mas só possivelmente, está a falar de Zidane, que resolve a final do Mundial-98 com dois golos ao Brasil (3-0). Ou então possivelmente, mas só possivelmente, está a falar de Ronaldo fenómeno, o herói da final do Mundial-2002 com dois golos à Alemanha (2-0). De Ronaldo, nem ai nem ui, muito menos oi.
MOURINHO + RONALDO = (FALTA) INCENSO
O caso muda significativamente de figura (e tom) quando juntamos Ronaldo e Mourinho. Para aqueles que passam a vida a elogiar a vivacidade dos actores, das câmaras, das acções e do guião das telenovelas brasileiras em relação às portuguesas, chega de rebaixar o produto nacional. É tempo de mudar de opinião (e de canal), porque Mourinho e Ronaldo mais se parecem com dois actores de uma soap opera de baixo nível, mas rica em provocações, respostas tortas e intimidações. Historicamente, o bate-boca começa em Abril de 2007, quando o Manchester United de Ronaldo começa a questionar, dentro de campo, a superioridade do Chelsea de Mourinho. "O Manchester United tem muitos penáltis a favor. Basta Ronaldo cair e... pronto! Na área deles, podem cair todos e nada!" A resposta vem logo a seguir. "Não quero ser arrastado pelas queixas de Mourinho contra os árbitros, pois toda a gente sabe como ele é. Tem sempre de dizer algo, porque não consegue admitir os seus fracassos." Uyyy, caliente. Más? Sim, mais. "Isto nem é um jogo de palavras entre mim e ele. É um jogo onde um miúdo fez algumas declarações, não demonstrando maturidade nem respeito. Tem talvez a ver com uma infância difícil, sem educação apropriada."
As cenas dos próximos capítulos indicam-nos Dezembro de 2008, quando o sorteio dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões junta United e Inter. Aí, o treinador português ataca de novo. "Quando penso em grandes jogadores, vêem-me à cabeça nomes como Kaká, Messi e Ibrahimovic. Ronaldo é bom mas não é o melhor. Para mim, esse é Ibra." E agora, há resposta? Há pois. "Não falo de José Mourinho. Se me perguntarem por Sir Alex, digo-lhes qualquer coisa, mas não me interessa o que se passa com Mourinho." Insistem com o rapaz e ele... "Se o Manchester United pensar em contratar Mourinho para substituir Sir Alex, eu saio."
Huuum, e se Ronaldo for para o Real Madrid em 2009 e Mourinho também em 2010? E-s-p-e-c-t-á-c-u-l-o. Ou não. os dois convivem bem no início mas depois aquilo descamba. O Madrid perde 2-0 com o Barça no Bernabéu para a meia-final da Liga dos Campeões. Na zona mista Ronaldo dá o toque. "Eu, como avançado, não gosto de jogar assim, mas tenho de me adaptar àquilo que a equipa me pede." Beeeem, danger zone. Antes da 2.a mão, salta cá para fora o monólogo de Mourinho no balneário. "Queixas-te de que aqui jogamos à defesa, mas sabes porque é que jogamos assim? Por tua culpa. Como tu não queres defender, não queres fechar as alas, tenho de meter a equipa atrás. Eu tenho de gostar de ti porque tu és irmão do meu irmão, e quando alguém é irmão do seu irmão, então é irmão também." Irmão, que irmão? "É o Jorge Mendes [empresário]", explica Higuaín a Kaká, o único que não entendera a zaragata.
Como se isso fosse pouco, Mourinho tem ainda a capacidade de rodar a faca depois de ser expulso na despedida, tal como Ronaldo, na final da Taça do Rei. "Fui treinador principal pela primeira vez em 2000, mas antes disso fui adjunto em grandes clubes, com grandes treinadores e trabalhei com os melhores jogadores do mundo. Tinha 30 anos e treinava o Ronaldo, não este [Cristiano Ronaldo], mas o verdadeiro, o brasileiro" Cabuuuuuum. Nos EUA, Ronaldo ouve, digere e... "Sempre respeitei os meus treinadores por onde tenho passado e fico com as coisas boas. Tento sempre aprender algo com eles. Falar de gente que fala mal de mim... já estou acostumado. Em Portugal é costume dizer-se: não cuspo no prato em que como."
FIGO + MOURINHO = OURO
Sporting, Barcelona e Inter. As voltas que a vida dá, hein?! Figo e Mourinho conhecem-se em Alvalade, com Robson como testemunha, cruzam-se em Camp Nou, novamente com Robson metido ao barulho (conquistam Taça do Rei e Taça das Taças), e desaguam no Giuseppe Meazza (Serie A italiana). Os dois respeitam-se há anos e não existe um único indicador de confusão entre eles. São meninos bem-comportados, portanto. Abençoados pelo gentleman Robson. A partir daqui, é só elogios. O último deles em 2010. "Özil é um génio. Como Figo." Quando Figo se abalança na candidatura à presidência da FIFA, um dos primeiros a manifestar o apoio público é Mourinho. "Conheço-lhe carácter, determinação e paixão pelo futebol. Será um presidente focado no futebol, a pensar o jogo e tudo o que pode ser melhorado e um presidente próximo das federações. A candidatura de Figo é uma boa notícia para o futebol." Aí estão os três Reis Magos do nosso contentamento. Amigos como nunca? É só seguir a estrela" (texto do Jornal I com a devida vénia)