quinta-feira, março 12, 2015

Reportagem Visão: "Exame ao DCIAP"

"Há dois anos, no dia 17 de setembro, os inspetores João Rato e Paula Peres sentaram-se numa sala do oitavo piso do edifício do Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP), na Rua Alexandre Herculano, para começarem uma tarefa mais complicada do que imaginavam: uma auditoria aos serviços do DCIAP que, desde 1999, investiga os casos de criminalidade mais complexos e mais mediáticos. Era uma sala peculiar e inacabada, onde estava instalado o serviço de videoconferência. Não tinha vidros - nunca chegaram a ser colocados - pormenor que impedia o isolamento total dos dois inspetores. Para realizarem a auditoria, os 'fiscais' dispunham de um computador fixo, para uso partilhado, com ligação à rede do DCIAP e à internet, mas optaram por TRABALHAR nos seus computadores portáteis, para não entrarem em disputas. Como o acesso à internet através destes equipamentos requer uma autorização especial, os inspetores acabaram por usar uma pen com acesso a uma rede 3G que era de um funcionário. Uma forma muito portuguesa de desenrascanço bem exemplificativa das contingências que vieram a encontrar.
Anomalias graves
A inspeção durou quatro meses, avaliou a atuação do departamento de 13 de setembro de 2009 a 13 de setembro de 2013 e originou um relatório de 146 páginas que foi divulgado pela Procuradoria-Geral da República na última semana. As conclusões não são animadoras, mas deixam espaço para que Amadeu Guerra, atual diretor do DCIAP, comece do zero, eliminando vícios, criando regras e sobretudo arrumando a casa, o que já vem fazendo. "É a própria inspeção que reconhece que a direção já tinha identificado práticas organizacionais e procedimentos a alterar", assume Amadeu Guerra à VISÃO, acrescentando que "as sugestões apresentadas pela inspeção são de grande utilidade". Ponto prévio: o DCIAP não é só o departamento onde 'correm' os chamados "LEADING cases" (a expressão é dos inspetores), com maior impacto nos media, como a Operação Marquês ou os casos Rui Pedro, BPN, Freeport, Isaltino Morais, Labirinto, Submarinos e Monte Branco. Também é um departamento que se dedica, e muito, a processos de associação criminosa, envolvendo tráfico de droga, casamentos por conveniência, assaltos a ATMs com explosão, burlas na internet ou auxílio a e/imigração ilegal. Atualmente, tem 20 procuradores da república em funções, coadjuvados por sete procuradores-adjuntos e uma equipa de oficiais de justiça e elementos de órgãos das polícias criminais. Mas nem sempre foi assim. A falta de recursos humanos é uma das falhas apontadas e tem como resultado um elevado número de pendências e, pior, de processos intocados há vários anos. Na página 110 do relatório, os inspetores referem-se às "muitas centenas, se não milhares de processos administrativos que se encontram há anos sem qualquer movimento, com e sem qualquer diligência realizada, tendo-se encontrado mesmo alguns pendentes desde 2004, 2005 e 2006 e por aí fora". A sugestão para resolver o problema é uma espécie de saneamento das ações paradas. "A situação só é passível de reversão se o DCIAP assumir que não tem sentido manter pendentes aqueles milhares de processos administrativos (...), determinando o seu encerramento massivo para reiniciar esta atividade do ponto zero."
Sugestões para melhorar
Essa é, aliás, uma das vantagens desta inspeção: Amadeu Guerra, que sucedeu a Cândida Almeida no departamento, tem carta branca para recriar o DCIAP. E começou a fazê-lo logo a 28 de janeiro, oito dias depois de terminar a auditoria, quando instituiu a nova estrutura daquele organismo, com três equipas especializadas por tipologias criminais. Outras sugestões dos auditores incluem: a criação de uma plataforma virtual de registo de todo o fluxo processual e administrativo; a adoção de medidas para suprir deficiências de organização/funcionamento; o fim da atribuição casuística dos processos, por despacho imotivado do diretor; a elaboração de um regulamento para uso de telemóveis e plafonds disponíveis; a instalação de um terminal de multibanco na secção de processos; a realização de um inventário completo de bens e equipamentos (ninguém sabe exatamente o que tem o DCIAP); a aquisição de equipamento de gravação audiovisual dos depoimentos; e a instituição de regras claras de afetação dos magistrados e dos funcionários colocados no DCIAP. Sobre este último ponto, os auditores escreveram: "Não conseguimos descortinar um critério entendível que tenha presidido à escolha dos funcionários e dos elementos de órgãos de polícia criminal para desempenharem funções no DCIAP, a não ser o que assentava no conhecimento pessoal e na amizade entre os elementos que já se encontrassem a TRABALHAR no departamento."
O lado bom do relatório
Os elogios começam na página 139 e descrevem "a quase total sintonia entre as decisões do Ministério Público (MP)" e as "proferidas pelo Tribunal Central de Investigação Criminal (TCIC) na fase de instrução". Dos 84 casos em que foi requerida a instrução, "houve decisão de pronúncia coincidente, com exceção de um caso em que houve dissonância parcial". A mesma sintonia verificou-se em relação a recursos interpostos contra as decisões do MP em matéria de medidas de coação, por exemplo. "As decisões dos tribunais superiores coincidem, em grande medida com as do TCIC, que por sua vez foram favoráveis às posições do MP." Na página seguinte, porém, os ânimos refreiam-se. "Menos favoráveis se apresentam os resultados obtidos em fase de julgamento." Os números mostram que quase um terço dos processos (28,85%) não redundam em condenações para os arguidos em primeira instância, 38,46% dão origem a condenações parciais e 32,69% são absolvições. A auditoria não chegou ao pormenor de analisar a eficácia da atuação de cada um dos vinte procuradores do DCIAP, tentando perceber, por exemplo, se as suas acusações originaram ou não condenações. Mas esta não era uma inspeção à atuação e ao mérito dos magistrados, como se lê logo na primeira página. Talvez numa próxima OPORTUNIDADE.
Casos caricatos
Situações surpreendentes relatadas pelos inspetores

É a PGR que assume o pagamento das multas por excesso de velocidade e estacionamento irregular dos motoristas do DCIAP
As sete pastas de despachos finais de arquivamento tinham 258 despachos quando deviam ter 576 (os outros não apareceram).
Os magistrados com telemóvel de serviço têm um plafond mensal de gastos.Menos os do DCIAP. Não há regulamento para isso. Alguns têm plafond, outros têm bom senso
No ano de 2010, as despesas correntes daquele departamento ultrapassaram as da própria PGR, em cujo orçamento se engloba o DCIAP.Os seguranças registam as matrículas dos carros que entram na garagem, mas não os ocupantes
Há magistradas que foram seguidas até ao ?interior do edifício por estranhos que, à entrada, disseram: "Estou com aquela senhora"
Parte do arquivo a cargo do procurador Rosário Teixeira está depositado num dos pisos de estacionamento (delimitado por uma rede)
O edifício do DCIAP é envidraçado e num dia de sol de inverno a temperatura interior pode rondar os 30º C (só há refrigeração no verão)
Perguntas e respostas
Uma auditoria útil
Amadeu Guerra explica à VISÃO como o DCIAP está mudado
O departamento já está a mudar?
Ao iniciar funções, esta direção do DCIAP tomou medidas organizativas, de estruturação e planificação da atividade do departamento. A título de exemplo, refiram-se a ordem de serviço sobre segurança no edifício e a definição do conteúdo funcional dos magistrados.
E ao nível da estrutura do DCIAP, cujo relatório considera 'desarrumada'?
Foi aprovada a nova estrutura e criadas equipas especializadas, como pode ver-se em documento publicado na página de internet do departamento.
As anomalias detetadas ?no registo dos processos também já foram tratadas?
Foram alterados procedimentos no que respeita à digitalização de processos, algo que foi considerado pela inspeção como 'inovador quanto ao acompanhamento e controlo hierárquico dos processos'.
A falta de meios humanos vai ser colmatada?
O Conselho Superior do Ministério Público deliberou abrir concurso para o DCIAP. A apresentação de candidaturas decorre até 10 de março.
E as contingências informáticas?
Além de aplicações informáticas, sistema de digitalização e sistema de gravação de áudio e vídeo, foram adquiridas licenças de software que permitem aumentar a capacidade análise de informação e várias impressoras multifunções.
O que fará com as sugestões do relatório?
Muitas das necessidades inventariadas estavam previstas no plano de atividades para 2014 e já se encontram implementadas" (texto da jornalista da Visão,  Sónia Sapage, artigo publicado na VISÃO de 5 de março, com a devida vénia)